sábado, 7 de março de 2009

De encontros e de possíveis

Nesta época contemporânea, tudo habita em tudo, tudo se contagia de tudo. Aceleração e excesso são os signos atuais do cotidiano.
Cada vez mais solitários, estamos sempre em trânsito, mas poucas experiências deslocam realmente nossa percepção, nossas idéias e visões de mundo. Distraídos ou exageradamente concentrados, corremos de um problema a outro, a cada novo dia.
Dançar, para mim, sempre foi existir. É mais do que uma forma de viver, é o próprio entendimento do que pode ser a vida, condição de possibilidade num mundo que sempre nos apresenta impossíveis.
Primeiro como bailarina, depois como coreógrafa, me pergunto: como podemos aproveitar tudo isso, para a dança que dançamos, criamos ou pensamos? Será possível constituir, a partir de uma ética da amizade – como quereria Michel Foucault - um espaço criativo potente, que se converta numa nova condição de possibilidade para nossa existência? Como escapar dos processos de captura de subjetividade a que todos estamos sujeitos numa sociedade de controle, como garantir a existência de um campo intensivo de criação, linha de fuga que nos possibilitasse a re-invenção cotidiana de nossos espaços internos e externos?
A Dança não se restringe às suas técnicas codificadas, e convém lembrar que, atualmente, quando trazemos para a dança a noção de corporeidade, as abordagens corporais e técnicas se multiplicam ao infinito. Esse fato contribui para que a noção de coreografia, tal e qual a utilizamos tradicionalmente – uma seqüência de passos organizada no espaço e executada harmoniosamente numa música – não dê mais conta da complexidade de fatores implicados na composição coreográfica.
Novas formas de organizar elementos e informações nos trazem as mais diferentes cenas e possibilidades, que buscam estratégias outras para atingir nossa percepção e provocar deslocamentos.
No entanto, acredito: generosidade é fundamental! A dança é experiência que se revela maior quão mais compartilhada seja.
Antes de ser técnica – e inclusive sendo – a dança é mais, muito mais que o reduzidíssimo caráter competitivo que a maioria das academias acaba por conferir à sua prática. É produção de alegria e subjetividade, invenção de si e do mundo, desterritorialização vertiginosa, mas também delimitação de novos territórios existenciais e afetivos.
Segundo o filósofo Gilles Deleuze, o uso mais rico que alguém pode fazer de sua solidão é “servir-se dela como de um meio de encontro, fazer uma linha ou um bloco passar entre duas pessoas, produzir todos os fenômenos de dupla captura, mostrar o que é a conjunção.”
Adotei o encontro como estratégia para um processo criativo, e minha produção é determinantemente marcada pela potência dos encontros que me permito vivenciar. Interessam-me os afetos de que somos capazes. Bons encontros se constituem mais na possibilidade de habitar um mesmo tempo, do que de habitar um mesmo espaço.
Cultivar a permanência do olhar nas fissuras do cotidiano – corpos e vidas – possibilita-nos a experiência de um tempo que escorre, e não apenas se precipita. Nessa dimensão de tempo escorredouro e dilatado - não-escorregadio – o espaço entre se configura, entre-imagem, entre-movimento, entre-lugar.
Compor: fazer parte de; formar, constituir, pôr em ordem; constituir-se em...O que torna um movimento especial a ponto de virar dança é minha insistência em não perdê-lo. Exercício de contrários: disciplina e flexibilidade, firmeza e tolerância, humildade e impetuosidade, paciência e urgência, intuição e conhecimento, generosidade e egoísmo, cumplicidade e solidão.
Num processo de atualização ininterrupto, eis como o ato de dançar pode constituir-se num entre-lugar: como um regime de disponibilidade onde coloca-se um corpo, independente de sua localização geográfica, uma possibilidade de linha de fuga, num tempo intensivo, potencializador dos encontros e dos afetos.
Um artista nunca é uma obra só, é tudo o mais que cria e transforma, e a imanência disso: tudo o que nunca vai criar e nem transformar. Para além do que se constituiu chamar de “artes da presença”, uma parte considerável do processo de fruição estética não se dá na composição, e escapa do criador. A fruição estética se dá sempre no corpo em relação.
Conosco, ainda, Gilles Deleuze: “De que afetos você é capaz? Experimente, mas é preciso muita prudência para experimentar. Vivemos em um mundo desagradável, onde não apenas as pessoas, mas os poderes estabelecidos têm interesse em nos comunicar afetos tristes. (...) Não é fácil ser um homem livre: fugir da peste, organizar encontros, aumentar a potência de agir, afetar-se de alegria, multiplicar os afetos que exprimem ou envolvem o máximo de afirmação.”
Desta forma, percebemos que a dança pode não ser o que mercadologicamente se espera dela. Melhor é quando entendemos que é justamente o contrário: a dança, vivenciada, produzida e reinventada a cada dia, como movimento e como pensamento, num espaço ético, passível sempre de novos e bons encontros, pode – e deve! - ser sempre o que escapa.

Um comentário:

  1. Eita! Vou ficar por aqui e me deleitar em suas palavras impulsionadores de leituras, e mais ainda impulsionadora para um encontro consigo mesma. Vou começar assim, da última para a primeira, não posso nem quero deixar escapar todo e qualquer pensamento, minúncias, detalhes...
    Dançar, sim, é muito mais que mercadoria, movimentos, passos coreografados, um discurso...
    Transcende as justificativas...
    Por muito tempo, dancei como meio de aliviar tensões e esquecer o meu mundo, dancei por fuga, dancei por confusão, insegurança, inconstância. Dancei e fui levada para outros mares, outras significações. Hoje, danço porque meu silêncio não supre a necessidade de ficar calada, não supre tudo aquilo que é incômodo, encorajador, ou mesmo sarcástico, subliminar... Entendo-me bem mais que algum tempo atrás, sei o tempo do meu tempo, e a talvez a ordem, ou desordem dos meus dias. Sou preenchida do cotidiano, flamejante movimentações diárias...
    É assim, você me fez pensar sobre o dançar, o ato, a significância, a que destina o seu cumprimeto.
    " O mundo está cheio de espetáculos de dança, porque mais um? POR QUÊ?"

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