sábado, 7 de março de 2009

Falas inacabadas para Élida Tessler



(1ª carta escrita à artista plástica gaúcha Élida Tessler, em agosto/99, sob o impacto do 1º encontro. a partir daí, iniciamos correspondência e fluxo de afetos, que gerou o espetáculo Vagarezas e Súbitos Chegares, livremente inspirado nas obras de Adélia Prado e da própria Élida, que assinou a concepção visual. O espetáculo, realizado pela Cia da Arte Andanças, estreou originalmente no Clégio de Dança do Ceará, em 2000.)

Estou embebida por Adélia Prado, por isso começo por ela:
“Quero saber: se der o leite sem a nata, diminui-se o mérito da minha oferta? Dar a vida é mais fácil para mim que dar a nata do leite, os ovos, a lata de óleo para a Alvina. Quero perder a vida, não o que me parece substanciais pedaços dela, vazando de mim como água entre os dedos. (...)”
Domingo, dia seguinte ao primeiro encontro, dia seguinte às primeiras falas inacabadas da conversa/vida poética.
Acordei pensando: que bom que vi muitos pedaços de coisas, ainda que imóveis, limitados por um quadrado na parede (que dependendo do olho até se transforma numa moldura bonita), deslocados de sua geografia. Que bom que não vi uma obra só, que pude tocar em vários instantes orgânicos de uma pessoa, porque isso me dá muito mais do que a contemplação de uma obra, me dá: uma pessoa.
Aos visionários de plantão, tenho sempre a vontade de lembrar a dimensão humana de todas as coisas, das pedras, dos panos, dos corpos. Porque nada mesmo do que se cria, do que se transforma (e tudo se cria, tudo se transforma, até nós), pode se ver livre dessa dimensão. Um artista nunca é uma obra só, é tudo que cria e transforma, e a imanência disso: tudo o que nunca vai criar e nem transformar.
Dessa forma, analisar uma obra de arte chega a me parecer desumano, se isso se constitui somente num processo de racionalização que tem como pretensão encerrar-se em si mesmo. Oco. Desnecessário. Cansativo.
“No quarto das meninas tem uma fronha cheia de meias desaparelhadas, preciso organizar as gavetas, reforçar as costuras da minha calça comprida e meu desejo é ter o resto da vida sem nenhuma perturbação, pra emendar os pedaços de tudo que já senti e pensei, fazer uma peça inteira, começo meio e fim. Quando faço uma boa música, de certa forma ela cristaliza pra mim alguma coisa, me religa a uma parte da qual fui separada. Passarinho só canta, abelha só faz mel, flor fica só sendo flor. E eu? (...)”
É que lido com o corpo. O meu e o dos outros. Criar formas com meu corpo e com outros corpos me pede uma lucidez, senão eu enlouqueço. Que cada vez que me movo, movo tudo o que sou, tudo o que fui e serei, tudo o que gostaria de ser.
Volta, Adélia...
“Descobri e contei a Pedro: o corpo é humilde, o corpo é muito humilde. Ainda escrevo uma tese que parecerá marota: de como são bons e agradáveis os gases e odores do corpo e de como nos deleitamos com eles sem ousar confessa-lo. Ora o que é o corpo? Necessitarei de quantas paixões para amansar meu orgulho e me deixar ver de frente, de costas, de quatro, comendo, descomendo, sem turvar meus olhos? Para isto caminho. Alguém me ensinará. Uma paixão, uma grande paixão me tomará de tal forma que tanto se me dará ser...”
Cada vez que me movo, chacoalho a poeira do que está impresso na minha carne. Por isso preciso de uma contenção. Economia de energia: voz, gesto, pensamento. Pensar não me dói – não mais. Refletir sobre as coisas me alimenta. Desde que problematizar questões não me vicie, senão isso gera uma paralisia. Senão não produzo. Ou melhor: senão não danço! E de tudo que eu possa fazer ou pensar, isso me parece o mais grave.
Tem uma diferença muito sutil, para mim, embora vital: produzo porque gosto, mas danço porque preciso, porque é no meu movimento que nasce o ar que respiro. Minha dança é ao mesmo tempo meu coração batendo e uma fé. Isso é uma essencialidade da qual dependo para existir, e ela me deixa com menos espaços para serem ocupados com “melancolias não-essenciais” (Calvino).
“Nunca achei que tivesse imaginação, pois só lido com o que existe. (...)”
O feminino, na Adélia, nunca me pareceu feminista, panfletário de direitos arrancados ou nunca concedidos. Na vida, sim, algumas vezes sinto um impulso violento, resquício talvez de longos anos de abnegada submissão, herança de todas as mulheres de todos os tempos do mundo. Mas quando penso em dizer alguma coisa com meu trabalho, em produzir um significado com minha dança, o universo em que transito é sempre o da mulher sendo, e não o da mulher não-sendo. A mulher sendo é algo tão grande, que para conseguir mostrar um pouco disso preciso de mínimos: pequenos gestos (nascendo ou explodindo), silêncios, coisinhas, ações, fluxos, respiração, objetos: COTIDIANO.
A mulher sendo é minha contemporaneidade, sou eu, é você, é Clarice. É Adélia:
“Alguma coisa me escapa neste início de compreensão, esforço que não me agrada. Pressiono um desentupidor na pia da cozinha e vêm à tona grãos inchados, arroz com casca, fragmentos compactos de sabão e gordura e, sem avisos, um estado de sentir, ou de ver, não sei, que já me ocorreu olhando fotografias antigas de manequins posando em paisagens de inverno e outras mais coisas insólitas. É mais que felicidade, mais que prazer. É: prestes a explodir. É: todo ser é belo. É: tudo é tão transitório, desfatiguemo-nos. É a unidade de tudo num relance apanhada. (...)”
Teu trabalho me trouxe silêncios delicados. Imagens fortes e no entanto fluidas. (Como uma imagem pode parecer ao mesmo tempo tão sólida e tão maleável?)
A transformação visível dos objetos me trouxe viva minha própria condição de barro. Fluxos orgânicos que sou eu. Estados da matéria que sou eu. Olho que vê numa toalha estendida num varal a suspensão da vida: sou eu.
“A vida é às vezes leve e boa como será, às vezes experimento como serei, um ser inteiro repousando em sua própria unidade, que não se lembra de si. (...)”
E – engraçado, isso! - as cores me pareceram sempre presentes, apesar de não explicitadas.
Meu coração sorriu, nas tuas “múltiplas bondades cantadas”.
Obrigada!
“De vez em quando deus me tira a poesia
Olho pedra, vejo pedra mesmo.
O mundo, cheio de departamentos,
Não é a bola bonita caminhando solta no espaço.,
Eu fico feia, olhando espelhos com provocação,
Batendo a escova com força nos cabelos,
Sujeita à crença em presságios.
Viro uma péssima cristã.”
(”Paixão”, de Adélia Prado)

Ah! Os outros trechos de Adélia são do livro “Os componentes da banda”.
Espero que ela te sugira cheiros, tão instigadoramente saborosos como os que a mim me invadem.
Que este primeiro encontro, marcado por tantas falas inacabadas, seja apenas o primeiro de muitos.
Abraços, para você e Edson, até breve, eu espero...

Andréa Bardawil Campos, 08.08.99 (Após Uma Conversa: poesia)

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