quarta-feira, 11 de março de 2009

Sobre Foucault e Leonilson







O tempo de hoje é um tempo que carece de preenchimento. Precisa-se do muito e sempre. A satisfação de um espaço preenchido – interno e externo – dura pouco, quase nada. Logo precisamos de mais. Necessidade cuidadosamente produzida a cada instante, por uma lei de consumo da qual nenhum vivo escapa. Num mundo de tantos estímulos, o tédio não pode existir. E tédio pode ser sinônimo de qualquer coisa ou situação que não pertença a este estatuto da velocidade e do excesso.
Cada vez mais difícil é abrir espaço para o pequeno, o detalhe, o sutil, o lento. Precisar de mais é uma condição intensa, que se projeta em nossas compulsões diárias. Tudo se converte, então, na tentativa de resolução de uma intensidade, porque também aprendemos desde cedo a pensar no desejo como falta.
Quando alguém pergunta sobre quem foi Leonilson, quase sempre a primeira resposta é: “um artista plástico cearense que morreu de AIDS”. O estigma criado pela doença parece se impor a uma trajetória de vida intensa e preciosa. Quase como se a morte fosse um castigo para quem viveu a vida com tanta intensidade, e a culpa fosse algo do qual não pudéssemos escapar.
O trabalho de Leonilson nos inspira exatamente pela intensidade, aonde o que vai sendo bordado e costurado é a própria vida, o que fica inscrito na própria carne. Como algo tão rudimentar pode trazer em si tanta força? Não é da morte que este trabalho trata, é do desejo, da vida se afirmando a cada dia, apesar de todos os processos de captura de subjetividade a que estamos sujeitos.
A influência do imaginário nordestino, ainda que não tenha convivido com isso muito tempo, se considerarmos sua condição de cidadão do mundo, é sutil e determinante, ajudando na construção dessa ética/estética de afirmação da vida, abrindo espaço para uma alegria intensa, por vezes aparentemente infantil e gratuita: as cores vivas, as festas, a celebração, os rituais, as estórias, a criatividade. Tudo reprocessado com uma certa ternura. Caberiam as palavras de Ana Cristina César:
“...de uma doçura venenosa de tão funda...”
Tudo muito próximo de uma dimensão processual do trabalho, o refinamento está justamente no aspecto inconcluso. Impressões a que se chega não por meio de um escamoteamento – por vezes romântico, por vezes ignorante e alienado - da realidade, da maquiagem das imagens, em formas perfeitas, bem torneadas, com limites definidos.
Singeleza e inocência que atingimos justo por nos defrontarmos com o tosco, o impreciso, o descontínuo, o que não tenta caber no universo moral estabelecido – que no íntimo nem sempre aceitamos, mas que por inabilidade de operarmos noutra instância, com outras ferramentas estruturais, acabamos sempre por cobrar e exigir. Efeito que por si já basta para provocar uma desterritorialização.
Farejando a intensidade de Leonilson, outros fluxos possíveis nos perpassam, como Caio Fernando Abreu e Michel Foucault, ambos igualmente vítimas da AIDS. O primeiro nos fornece pistas, através de suas cartas, de uma trajetória possível do prazer. O segundo nos fornece pistas, através de seu pensamento, de uma nova ética da existência. Descrito assim – Foucault – por Deleuze: “Perigoso, sim, porque há uma violência de Foucault. Ele tinha uma extrema violência controlada, dominada, tomada de coragem. Ele tremia de violência em certas manifestações. Ele percebia o intolerável.” Tal e qual Leonilson, outro Perigoso.
A partir disso, faz sentido pensar que – como tudo o mais – nossa forma de estar no mundo é uma construção. E se “o que é possível é construir o possível”, penso que tratar das relações humanas pode querer dizer: encontrar uma forma de estar no mundo. Uma forma outra, para além das convenções institucionalizadas. Por uma ética da amizade, como quereria Foucault.
(escrevi em 2004.)

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