domingo, 1 de novembro de 2009

A invenção do lugar



Espetáculo Hymnen, Ballet de Lorraine, coreografia de Lia Rodrigues e Didier Deschamps, apresentado na Bienal de Dnça do Ceará (Foto: Alex Hermes)


O filósofo francês Jacques Rancière, sinaliza-nos que a política tem sempre uma dimensão estética, sendo ambas, estética e política, maneiras de organizar o sensível. Entendendo as práticas estéticas como “formas de visibilidade das práticas de arte”, Rancière situa a “partilha do sensível” como cerne da política, procedimento através do qual podemos construir a inteligibilidade dos acontecimentos.
Não à toa, questões como habitação, construção, permanência, formas de reunião ou de solidão convertem-se em dramaturgia na dança e na arte contemporânea, em geral, possibilitando a produção de novos significados que nunca estão postos a priori, na obra artística, mas se constituem sempre em relação.
Aproximando-nos ainda de mais um filósofo, Spinosa, e aceitando que cada indivíduo consiste numa potência singular, que aumenta ou diminui de acordo com os demais graus de potência a que se vincula, concordamos em entender o encontro como um plano de composição que de nós exige muita habilidade.
O bom encontro é aquele que aumenta nossa potência de agir. Ou, dito de outra forma por Vinícius de Morais, “a vida é arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. Se as paixões tristes, por sua vez, são aquelas que diminuem essa potência, convém lembrar então o quanto se ligam - as paixões tristes - ao exercício do poder.
Produzir um trabalho em arte contemporânea, portanto, não difere de pensar em como este trabalho se dará a ver, em que espaço, de que forma, através de que conexões se apresentará, a que atravessamentos estará sujeito. Ou seja: processo micropolítico de subjetivação, investimento de afetos em diferentes fases, pele-tecido onde a criação está imbricada com a exibição/performance.
Nesse sentido, podemos dizer que pensar em poéticas e políticas é pensar na invenção de um lugar, delimitado mais por intensidades do que por geografias, onde maneiras de fazer contribuem determinantemente para a reconfiguração de pertinências, relevâncias, territórios. Os corpos que dançam são os mesmos que protestam. São eles que convocam e provocam novas condições que permitam sua própria existência.
Inventar um lugar é inventar um novo espaço do corpo, operação que não é privilégio somente dos artistas, mas de qualquer relação onde haja investimento afetivo de corpos. Nossa capacidade de propor novas estratégias de colaboração está diretamente relacionada a nossa capacidade de invenção. Podemos pensar, então, que continuar inventando é continuar existindo, abrindo espaço para o que escapa, o que desloca, o que desestabiliza, como num embate criativo intenso e irrefreável.
Tal e qual na arte, a construção de novas condições de possibilidade no campo da vida depende fundamentalmente da nossa habilidade em compor afetos, mais que traçar alianças, favorecendo o surgimento de um plano de consistência potente, subversivo em si e por si, atravessado por dissensos, heterotopias, entre-lugares, estados de invenção que se constituem no avesso de um estado de exceção.
A Bienal Internacional de Dança do Ceará se pergunta: que planos de composição estamos ajudando a traçar? Qual a potência dos afetos aos quais nos vinculamos?
O preço de uma eficiência constante e inquestionável, que nos conduz à produção serializada – e aqui também situamos espetáculos, performances, instalações, projetos e editais – nesse caso, pode significar o comprometimento com procedimentos nada desejáveis.
Será que apresentamos nossas propostas com consistência suficiente para não esgarçar os encontros? Até onde estamos cientes de que a intensidade de um encontro não pode ser medida por um produto, que talvez o melhor seja nem haver um produto final? Como escrevemos nossos projetos, o que quantificamos em nossos relatórios? Que concessões estamos dispostos a fazer em nome da supereficiência que nos é solicitada por nossos financiadores e parceiros? Como estimular o surgimento de novos formatos de produção, exibição e circulação de trabalhos artísticos, reconfigurando os pactos estéticos já estabelecidos e investindo em novas – e sempre provisórias! – relações com o público? Como podemos evidenciar o imensurável sem sacrificar o indizível? Como potencializar bons encontros que se convertam em novos agenciamentos, que, por sua vez, deixem rastros éticos em nossas experiências estéticas?
É nesse contexto que a dança brasileira segue inventando seu lugar, ativando seu corpo coletivo, micropolítica e macropolítica indissociáveis. Trata-se mais do que Nós podemos fazer pelo mundo – e Eu nele, e o Outro nele – do que o mundo pode fazer por nós.
Andréa Bardawil
(artigo publicado no jornal O Povo, em 11/10/09)

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Um João...





Aqui em Fortaleza, na Bienal de Dança, foram duas semanas de muitos encontros. Pausa na pesquisa, para atravessamentos e graça de toda ordem. Um encontro fundamental: João Fiadeiro. Aqui e agora, breve diário de bordo de intensidades, sobre o estudo de uma composição em tempo real.
Ação que representa uma imagem ≠ Ação que é uma imagem
Como não manipular a situação/ação?
O ato de confiar no coletivo exige coragem.
“Esclarecer” é um ato de representação.
O método não é dramatúrgico, mas pode servir como instrumento para a inscrita dramatúrgica.
Dramaturgia: identificar o maior foco de interesse e tecer conexões.
O método não cria hipóteses, ele organiza as que já existem.
O método é útil na preservação da ideia.
O que chamamos de acontecimento não pode ser só o que está acontecer, mas também os rastros.
Como emergem os sistemas complexos? Emergem a partir do respeito por regras muito simples.
Como o coletivo pode se organizar não a partir de um dogma, um comando ou um líder, mas a partir de regras muito simples? Daí surge um fenômeno.
O equilíbrio está sempre dependente de uma relação de forças.
A imagem resulta das regras, não tenta significar.
Grande parte do trabalho é nomear claramente cada conceito. No método fica o que resiste.
O problema principal, na vida e na arte, é o Eu. É a incapacidade de se colocar no lugar do outro. Aqui, só existe o lugar do outro. Devemos sempre pensar: será que a imagem precisa de mim?
No fundo, a questão principal é como conseguimos construir uma comunidade. É um sistema autopoiético, um processo de cartografia.
Às vezes se age não em relação ao que está a acontecer, mas em relação a algo que já passou.
Uma das regras é: quando entramos, entramos para sempre. O “para sempre” não indica o final da cena, mas o instante máximo de sustentação de uma ação. Uma ação se situa como uma microcomposição.
As cenas iniciais podem emergir de qualquer lugar. As ações não têm retorno.
Qual o valor de uma imagem?
Para deixar uma imagem surgir, é preciso não querer. Para não querer, é preciso saber perder. Portanto, saber perder uma imagem é outra regra. A imagem só existe na duração.
Para deixar uma imagem surgir, é preciso não querer. Para não querer, é preciso saber perder. Portanto, saber perder uma imagem é outra regra. A imagem só existe na duração.
O problema não está no gesto, mas na pertinência do gesto.
Nós não somos tão importantes. É preciso uma humildade diante do fato de se estar vivo.
outubro/09

domingo, 16 de agosto de 2009

meditação...


Viver exige muita concentração.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

alegria, alegria




porque a alegria sempre volta...


ganhar espaço por dentro é abrir o coração.


deixar chegar a dor, mas deixar passar, também.

para que novo ar possa circular, e novas esperanças possam surgir.

flores e cores, sempre.



terça-feira, 30 de junho de 2009

Pina também voou...


Tempo de mais saudade.
Nada a dizer.

domingo, 21 de junho de 2009

uma saudade imensa, uma dor...




Generosidade, sinceridade.
Um coração imenso.
Amigo e irmão de todas as horas.
Amor.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Um balão...




Às vezes, as coisas doem em mim sem que eu as vivencie realmente. Basta saber delas, que eu sinto uma dor. Mas não é uma dor de morte, é, antes, uma dor de vida, quando reconheço minha existênciaem outras existências. E chamo de dor só o instante primeiro, o susto. Logo depois vira outra coisa, uma emoção, um assombro, uma paz, um silêncio. E tudo recomeça...uma dor, uma emoção, um assombro, uma paz, um silêncio...Isso tudo sou eu. Cuidado: não sou a dor. Inevitavelmente passo por ela. Mas necessariamente a ultrapasso. Acho que sou a tranquilidade depois da dor, e só deixo que as dores me cheguem imensas, a princípio, a fim de que me venha em seguida, maior ainda, mais larga e cheia, a tranquilidade.




(Escrevi isto em julho de 1992)

quinta-feira, 28 de maio de 2009

O Neutro







Roland Barthes:






O que os japoneses chamam de sabi: "simplicidade, naturalidade, não-conformismo, refinamento, liberdade, familiaridade estranhamente mitigada com desinteresse, banalidade cotidiana requintadamente velada de interioridade transcendental." Ainda Barthes: "Isso, na minha opinião, define bastante bem princípio de delicadeza."
"Princípio de delicadeza: tem por base (e suas condutas têm como determinação, orientação) alguma coisa que é como um estado amoroso."

"Brandura: recusa NÃO-VIOLENTA da redução da individuação, esquiva da generalidade por meio de condutas inventivas, inesperadas, não-paradigmatizáveis, a fuga elegante e discreta diante do dogmatismo, em suma ao princípio de delicadeza."

"Segundo o modelo oriental, a delicadeza obriga à eliminação minuciosa de toda e qualquer repetição: a delicadeza horroriza-se, melindra-se com repisamentos."

"Arte = prática fina da diferença: não tratar os objetos do mesmo modo: tratar o aparentemente mesmo como diferente."

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Ainda sobre um estado de invenção...



“De que recursos dispõe uma pessoa ou um coletivo para afirmar um modo próprio de ocupar o espaço doméstico, de cadenciar o tempo comunitário, de mobilizar a memória coletiva, de produzir bens e conhecimento e fazê-los circular, de transitar por esferas consideradas invisíveis, de reinventar a corporeidade, de gerir a vizinhança e a solidariedade, de cuidar da infância ou da velhice, de lidar com o prazer ou a dor?” (Peter Pál Pelbart)


Que planos de composição estamos ajudando a traçar? Qual a potência dos afetos aos quais nos vinculamos? Em que estratégias podemos investir, a fim de que as relações de poder necessariamente implícitas ali, no jogo da construção coletiva, não se convertam em relações de dominação?
O que pode garantir o Viver, o Existir, é a própria condição de continuar inventando. Estratégia micropolítica para invenção de novos mundos: afetar e ser afetado, ter e produzir alegria, desejar.

Permanecer em estado de invenção não é uma condição de estabilidade. Pelo contrário: é uma condição de mobilidade, é a própria condição de andar, nômades, porém sóbrios, já que “tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranqüilo”.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Por um estado de invenção


O que fica, dos processos mobilizatórios de organização, para além das conquistas tantas vezes elencadas nos documentos reivindicatórios?


Que relações podemos estabelecer disso com os processos criativos que convulsionam a arte contemporânea, em particular a dança?


Como pensar a fundação de um lugar/situação como a constante inauguração de um espaço de existência? Como pensar a fundação de um lugar/situação como se pensa a criação de uma obra?


Como pensar o traçado de novas formas de vínculos sociais, que permitam uma produção de sentido que não tenha como base uma tendência homogeneizadora?


Penso que seja importante, portanto, abrir brechas para refletirmos sobre a própria condição de permanecer em estado de invenção.


Inventar a utopia é exercitar a capacidade de desejar. Podemos pensar que continuar inventando, continuar desejando é: continuar existindo.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Sobre Foucault e Leonilson







O tempo de hoje é um tempo que carece de preenchimento. Precisa-se do muito e sempre. A satisfação de um espaço preenchido – interno e externo – dura pouco, quase nada. Logo precisamos de mais. Necessidade cuidadosamente produzida a cada instante, por uma lei de consumo da qual nenhum vivo escapa. Num mundo de tantos estímulos, o tédio não pode existir. E tédio pode ser sinônimo de qualquer coisa ou situação que não pertença a este estatuto da velocidade e do excesso.
Cada vez mais difícil é abrir espaço para o pequeno, o detalhe, o sutil, o lento. Precisar de mais é uma condição intensa, que se projeta em nossas compulsões diárias. Tudo se converte, então, na tentativa de resolução de uma intensidade, porque também aprendemos desde cedo a pensar no desejo como falta.
Quando alguém pergunta sobre quem foi Leonilson, quase sempre a primeira resposta é: “um artista plástico cearense que morreu de AIDS”. O estigma criado pela doença parece se impor a uma trajetória de vida intensa e preciosa. Quase como se a morte fosse um castigo para quem viveu a vida com tanta intensidade, e a culpa fosse algo do qual não pudéssemos escapar.
O trabalho de Leonilson nos inspira exatamente pela intensidade, aonde o que vai sendo bordado e costurado é a própria vida, o que fica inscrito na própria carne. Como algo tão rudimentar pode trazer em si tanta força? Não é da morte que este trabalho trata, é do desejo, da vida se afirmando a cada dia, apesar de todos os processos de captura de subjetividade a que estamos sujeitos.
A influência do imaginário nordestino, ainda que não tenha convivido com isso muito tempo, se considerarmos sua condição de cidadão do mundo, é sutil e determinante, ajudando na construção dessa ética/estética de afirmação da vida, abrindo espaço para uma alegria intensa, por vezes aparentemente infantil e gratuita: as cores vivas, as festas, a celebração, os rituais, as estórias, a criatividade. Tudo reprocessado com uma certa ternura. Caberiam as palavras de Ana Cristina César:
“...de uma doçura venenosa de tão funda...”
Tudo muito próximo de uma dimensão processual do trabalho, o refinamento está justamente no aspecto inconcluso. Impressões a que se chega não por meio de um escamoteamento – por vezes romântico, por vezes ignorante e alienado - da realidade, da maquiagem das imagens, em formas perfeitas, bem torneadas, com limites definidos.
Singeleza e inocência que atingimos justo por nos defrontarmos com o tosco, o impreciso, o descontínuo, o que não tenta caber no universo moral estabelecido – que no íntimo nem sempre aceitamos, mas que por inabilidade de operarmos noutra instância, com outras ferramentas estruturais, acabamos sempre por cobrar e exigir. Efeito que por si já basta para provocar uma desterritorialização.
Farejando a intensidade de Leonilson, outros fluxos possíveis nos perpassam, como Caio Fernando Abreu e Michel Foucault, ambos igualmente vítimas da AIDS. O primeiro nos fornece pistas, através de suas cartas, de uma trajetória possível do prazer. O segundo nos fornece pistas, através de seu pensamento, de uma nova ética da existência. Descrito assim – Foucault – por Deleuze: “Perigoso, sim, porque há uma violência de Foucault. Ele tinha uma extrema violência controlada, dominada, tomada de coragem. Ele tremia de violência em certas manifestações. Ele percebia o intolerável.” Tal e qual Leonilson, outro Perigoso.
A partir disso, faz sentido pensar que – como tudo o mais – nossa forma de estar no mundo é uma construção. E se “o que é possível é construir o possível”, penso que tratar das relações humanas pode querer dizer: encontrar uma forma de estar no mundo. Uma forma outra, para além das convenções institucionalizadas. Por uma ética da amizade, como quereria Foucault.
(escrevi em 2004.)

Sobre O Tempo da Paixão ou O Desejo é um Lago Azul


Este trabalho trata sobre o desejo, e um tanto assim de sentimentos/impressões/ coisas que o perpassam e que são perpassados por ele.
A obra de Leonilson, nas palavras de Lisette Lagnado, foi movida “pela compulsão de registrar sua interioridade, a fim de dedicá-las aos objetos do desejo”. Para Leonilson, a obra é corpo.
Isso nos serve de inspiração para tentarmos pensar o desejo não somente como falta, carência, tal como se estabelecem as linhas de montagem do desejo, na produção de subjetividade capitalística, como nos aponta Félix Guattari. Desinvestirmos dessas linhas de montagem e investirmos noutras linhas, quer dizer abrirmos espaço para o desejo como afirmação ou invenção da vida.
As coisas não se reduzem a uma só verdade. Assim como o desejo não se reduz nem a um bem inquestionável nem a um mal necessário. Nem bem nem mal. Nem só falta nem só excesso. Nem só prazer nem só dor. Nem só o que nos faz ficar, nem só o que nos faz partir.
Porque existe a intensidade e intenso não é só o que se move largo, extenso, acelerado. Cabe num travesseiro, o desejo maior do mundo. Um travesseiro bordado, escrito ninguém. Intensa não é a vida que nos cabe: é toda vida que couber em nós.
Vontade, então, de um corpo labiríntico, ambíguo, onde as saídas não são conhecidas. Não mais o lugar seguro, a casa, o quarto, o amor de um jeito só, comportado num corpo só, que é só, imóvel de outro. O corpo num devir-animal, “onde não há passado, nem futuro, e sequer presente; não há história” (Deleuze).
Nossa intenção não se reduz a recriar cenicamente o universo proposto por Leonilson. As imagens e referências sugeridas por seu imaginário devem nos servir como provocações, “meios de orientação para conduzir uma experimentação que ultrapassa nossas capacidades de prever. É um processo de devir-animal que não quer dizer nada a não ser o que ele se torna, e me faz tornar com ele. (...) Todo um mundo de micro-percepções que nos leva ao imperceptível.” (Deleuze)
A vida intensa que nos chega nas pequenas percepções, no miúdo do cotidiano, o detalhe que atrai o olho, uma cor, um pequeno gesto, um silêncio, um vazio. Coisinhas calminhas que sugerem não só uma economia de tempo e espaço, como também de movimento. Mais que economia, uma sobriedade. Numa época de excesso, o mínimo se nos impõe.
A pesquisa de movimento tende a interessar-se pela variação do tônus muscular. “Embora invisíveis, o espaço, o ar adquirem texturas diversas. Tornam-se densos ou tênues, tonificantes ou irrespiráveis. Como se recobrissem as coisas com um invólucro semelhante à pele: o espaço do corpo é a pele que se prolonga no espaço, a pele tornada espaço.” (José Gil)
Estimulando possíveis nesse corpo-onde-tudo-se-inscreve, à cata do entre a forma, do que não se explicita, do que desliza, do que escapa a uma configuração dura ou a formas pré-determinadas, como se com isso – e por causa disso – escapássemos nós mesmos de nossas posturas mais rígidas, de nossos preconceitos mais arraigados.
Cores, símbolos. Coisas. Tecido, pedra, corpo. Não se trata mais de costurarmos nossa própria carne, imagem já vista e gasta na arte contemporânea, Trata-se de, corpo parado ao vento e algum silêncio, perguntarmos: o que está escrito? Como continuar escrevendo? Mais uma vez a questão que não se aquieta: de que afetos você é capaz?
Maciez, aspereza. Fluidez. Texturas. (De objetos, imagens, movimentos.) O delicado. O Perigoso. A pele em contato com. Lembrando que, afinal, “o mais profundo é a pele” (Paul Valéry).
Objetos de um Leonilson mais que ambíguo, múltiplo: as pedras, os cristais, os tecidos, um travesseiro, uma calça jeans. Um corpo, um objeto e suas relações. Corpo-objeto, depositário de afetos, resíduo de fluxos. Relíquias de um homem-peixe, “com o oceano inteiro para nadar”.

domingo, 8 de março de 2009

Leo com o oceano inteiro para nadar




(Leonilson/Obra: Coração em chamas e trecho estraído de diário. Fonte: Projeto Leonilson.)
PARA QUEM NÃO COMPROU A VERDADE
Lisette Lagnado
O discurso da sinceridade pertence à estrutura expressiva do primitivo ou, mais explicitamente, a retórica do primitivo está baseada numa profissão de fé. Antes de mais nada, não se pode confundir sinceridade com verdade. Ser sincero exige credibilidade, não há verificação possível; já a existência da verdade depende de provas. A confissão é uma das manifestações literárias da sinceridade (J.J.Rousseau). O diário, também, quando se trata de narrar as disposições interiores de seu narrador - histórias, suportes de uma ficção. Mentiras? Talvez. Mentiras sinceras que vêm do coração. A busca de Leonilson consiste em nos convencer de sua sinceridade: para que seja acreditado, confessa até que é "mentiroso". A negação deste ato de fé não é a mentira mas a falsidade, inimiga jurada da sinceridade. Leonilson não abdicou de sua ironia característica, mas mesclou-a com questões de fé. Devoto fervoroso de um ideal romântico malogrado, este artista inscreveu seu gesto na epistolografia contemporânea. Cada trabalho (deliberadamente indefinido quanto aos limites do desenho, da pintura ou do bordado) foi feito como um registro íntimo, mergulho narcísico, e foi dedicado ao objeto de desejo. Há uma lógica da ambigüidade, muito atual, que permeia a atitude de Leonilson em todos os sentidos (estéticos, morais, religiosos, sexuais). Nela, a adoção de um princípio não exclui a coexistência de seu oposto. Embora possa se dizer que toda a sua obra atualiza a marca do mundo vivido pela subjetividade que vem pontuando a produção contemporânea, penso que o gesto de Leonilson trata, contudo, de algumas questões próprias: o discurso amoroso e as figuras do romantismo, a alegoria da doença e o uso da biografia para dar corpo à desmaterialização da obra de arte.

sábado, 7 de março de 2009

Poesia, dança, vídeo


Palavras de Eduardo Jorge, poeta, vídeomaker e outras coisitas mais, sobre San Pedro, poesia, vídeo, dança, resíduo para novos encontros, sempre. (A foto é dele, também.)


"O movimento do poema ao vídeo pode sim ser mais complexo, ramificado para que ele reverbere um pouco mais no pensamento. E também de uma alegria, uma vez compartilhado por afinidades (poesia, dança, vídeo) entre outras pessoas. E foi assim em 2006 com a proposta de Fátima Souza para dançar um poema, San Pedro, em Fortaleza, junto ao grupo que se reunia para além-da-dança no Alpendre. O projeto levou um nome Interferência: San Pedro. E um sentido delicado deste gesto “interferiu” até mesmo na morfologia da palavra brusca interferência, pois surgiu neste projeto junto à dança, um grupo de estudos, ensaios, gravações, escrita e se fez dessas atividades algo muito difícil de separar uma da outra. Tudo foi dançado. A importância de ainda lembrar San Pedro é sua reverberação em outros lugares, um contágio de um trabalho coletivo movido pela alegria do fazer e que anima outras pessoas, como mais recentemente na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, depois da exibição do vídeo-dança o olhar foi motivado a caminhar pela cidade até um outro edifício antigo do centro de Belo Horizonte chamado JK, além de outras atividades estéticas que as pessoas envolvidas na disciplina dos professores Adriano e Breno se propuseram junto ao espaço público. Assim, foi o San Pedro no edifício São Pedro. Mas pode ser no edifício JK ou outro lugar. Articular coletivamente atividades estéticas (como articular corpo e imagem), que não destoem de propósitos individuais dos participantes é uma coreografia das mais potentes que nos desafia a criar."

Alpendre dentro e fora



(Alpendre - Casa de Arte, Pesquisa e Produção/10 anos)

Configurado numa organização não-governamental, o Alpendre surgiu como idéia num grupo de estudos que reunia oito artistas, de diferentes áreas: Alexandre Veras (Vídeomaker), Eduardo Frota (Artista Plástico), Solon Ribeiro (Fotógrafo), Manoel Ricardo de Lima (Escritor), Carlos Augusto Lima (Escritor), Beatriz Furtado (Vídeomaker e Jornalista), Luis Carlos Sabadia (Gestor Cultural) e eu, Andréa Bardawil (Coreógrafa). Em comum, nenhuma produção ainda. Apenas o interesse pela contemporaneidade, pelas questões urbanas, e por alguns referenciais teóricos que perpassavam os trabalhos individuais de cada um, tais como Ítalo Calvino, Nietzsche, Gilles Deleuze e Félix Guattari, Walter Benjamim, Win Wenders, Artaud, Eugênio Barba, dentre outros.

Em 1999 o Alpendre passa a existir como espaço físico, situando-se num galpão antigo restaurado, na Praia de Iracema, reduto boêmio de Fortaleza. Por ocasião de sua inauguração, Alexandre Veras traçou a descrição que até hoje melhor deu conta das expectativas do momento, no texto que se segue:
“A palavra alpendre nos é preciosa. Remete a marcas que nos foram deixadas por longas noites de histórias, relatos e conversas acumuladas no aconchego de um alpendre. Nos faz lembrar esse território plástico que na sua lisura pode ser transformado, convertido e reconvertido, palco de brincadeiras e invenções, lugar do espírito de alegria e criação. Lugar de pouso e pausa para os que passam, lugar de acolhida e flerte com alteridade. Mas um alpendre também é esse lugar entre a casa e a rua, o exterior e o interior, espaço das trocas e dos fluxos.É aí que nos reencontramos, no meio dessas ressonâncias, no lugar das conversas, invenções, dos pousos e pausas, das trocas. É aí que o Alpendre vai se configurando como um lugar de passagens, um entre-lugar. Um espaço constituído por esses fluxos, interface entre o dentro e o fora. Uma espécie de acumulação por vizinhanças que não deve ser reduzida a uma simples aproximação, mas que potencialize os encontros, busque consistências, multiplicidade e leveza. Um jogo que a cada lance amplie o lugar da criação e do pensamento.Queremos construir esse espaço como se constrói um conceito. Interessam as questões contemporâneas com as quais a criação e o pensamento se embatem. Experimentar caminhos, como viajantes que não precisam habitar uma cidade, um estado, um país, mesmo que eles nos habitem. Nômades, mesmo que em nossos territórios, habitantes de uma velocidade intensiva.” (Alexandre Veras - Vídeomaker)·
O espaço Alpendre articulou-se em Núcleos: Artes Plásticas, Vídeo, Fotografia. Literatura e Dança. Mais tarde, assumido o interesse pela área de Formação, surgiu também o núcleo de Cultura e Cidadania, responsável pelo projeto NoAr, curso de formação na área de vídeo que reunia adolescentes. Cada um de nós exercia a coordenação de sua respectiva área, com autonomia para desenvolver suas ações, mas também com a responsabilidade de viabilizá-las, considerando que a instituição ainda não contava com nenhum suporte financeiro. Além disso, nos estruturávamos em torno do objetivo de potencializar a interface entre as linguagens, na programação e em nossas próprias produções. Os eventos eram em sua grande maioria gratuitos, e frequentemente simultâneos consistindo em mostras, exposições, debates e palestras, ensaios abertos, espetáculos, aulas, etc.
O Núcleo de Dança do Alpendre, por sua vez, organizou-se a partir de propostas desenvolvidas pela Companhia da Arte Andanças, dirigida por mim, e com uma trajetória já reconhecida na cidade tanto por sua produção quanto por uma pesquisa de linguagem que sempre tangenciou outras fronteiras, para além das estabelecidas pela dança. Tais propostas tinham como principal objetivo promover a divulgação e a reflexão em torno da dança contemporânea, favorecendo o acesso a produções do mundo todo, e fomentando um debate constante que se estendia por todas as ações estabelecidas. Dessa forma, disponibilizamos um acervo gratuitamente para consultas, onde reunimos em torno de 3000 livros, nas áreas de Arte, Cultura, Comunicação e Filosofia - 200 títulos na área de Artes Cênicas - e mais de 150 títulos de vídeos de dança, entre espetáculos e documentários, incluindo o acervo da Bienal Internacional de Dança do Ceará. Junto a isso, criamos uma programação permanente de aulas e cursos, e dois projetos de formação de platéia: o projeto Café com Dança (ensaios abertos e debates com coreógrafos convidados) e o projeto Entre-lugares (mostra de vídeos-dança e espetáculos contando com a participação de convidados de áreas diversas). Perpassando tais ações, mantivemos por três anos consecutivos um grupo de estudos que reuniu diversos pesquisadores em torno de questões pertinentes à corporeidade contemporânea e à subjetividade. Deste grupo, saiu o projeto San Pedro, concebido pelo vídeomaker Eduardo Jorge e pela escritora Fátima Souza, processo de criação coletiva e pesquisa interdisciplinar – dança, vídeo e literatura – que proporcionou as primeiras descrições sistematizadas de nossos procedimentos, resultando num vídeodança (San Pedro), num vídeo-documentário (San Pedro: um navio à deriva) e numa publicação (a revista San Pedro). Dentro deste contexto, onde os encontros se davam de forma espontânea e natural, tivemos o terreno propicio para mergulhar na experimentação do vídeodança, constituindo uma produção que hoje já soma 18 vídeos realizados.
Hanna Arendt, nos diz, em “O que é a Política?”: “O lugar de nascimento da liberdade nunca é o interior de algum homem, nem sua vontade, nem seu pensamento ou sentimentos, senão o espaço entre, que só surge ali onde alguns se juntam e só subsiste enquanto permanecem juntos. Existe um espaço da liberdade: é livre quem tem acesso a ele e não quem fica excluído do mesmo.”Os bons encontros – idéia constituinte do espaço-corpo-pele Alpendre, sempre aberto ao que nele aderisse – foram impulso básico para o movimento dos que nele habitam ou dos que por ele perpassam. Fator determinante em nossos processos de elaboração estética e de elaboração da própria vida, a co-habitação de diversos criadores e diversas linguagens num mesmo espaço, passível de ser re-convertido a todo instante, tornou-se cotidiano. Instigados constantemente pelo pensamento de Gilles Deleuze, confirmamos que é precisamente a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele faz pensar.
Após dez anos de intensos diálogos e um tanto mais de conversas jogadas fora, nesse espaço-corpo-pele, o que era impulso converteu-se em estratégia para a construção de novas condições de possibilidade, sobretudo no que diz respeito à constituição de processos criativos. Com isso extrapolamos o limite de nossos campos estéticos e experimentamos outras formas de existir. Apostamos no contágio e na vertigem. Aceitamos a desterritorialização como forma de andar. Habitamos o vazio e trabalhamos no avesso. E investimos em perder controles, linhas de fuga para lugares outros, pelos quais estar de passagem é por vezes a única constante.
Encerramos com palavras do filósofo espanhol, radicado no Brasil, Francisco Ortega, ao comentar a nova ética da amizade proposta por Michel Foucault, como estratégia para a afirmação da vida: “(...) A amizade representa uma relação com o outro que não tem a forma, nem de unanimidade consensual nem de violência direta. Trata-se de uma relação agonística, oposta a um antagonismo essencial, uma ‘relação que não é ao mesmo tempo incitação recíproca e luta, tratando-se não tanto de uma oposição frente a frente quanto de uma provocação permanente’. Relações agonísticas são relações livres que apontam para o desafio e para a incitação recíproca e não para a submissão ao outro. O poder é um jogo estratégico. A nova ética da amizade procura jogar dentro das relações de poder com um mínimo de dominação e criar um tipo de relacionamento intenso e móvel que não permita que as relações de poder se transformem em estados de dominação. (...) A amizade encontra-se além do direito, das leis, da família e das instâncias sociais, representando uma alternativa às formas de relacionamento prescritas e institucionalizadas.”
(Trecho de palestra conferida por mim em 2007, no Festival Move Berlim, Alemanha)
Atualmente, o Alpendre cede espaço permanente à Bienal Internacional de Dança do Ceará, e conta também com outras companhias residentes, além da Cia da Arte Andanças: Artelaria, N ∞, Circo Ludico Experimental, Cia Etra.

Entrevista a Manoel Ricardo de Lima



(Respostas concedidas a Manoel Ricardo de Lima, em 2000, para a revista Afinidades Eletivas.)

(Élida Tessler/Obra Você me dá sua palavra? - 2004)

Onde nasceu e formação

Nasci em Fortaleza mesmo e não arredei muito o pé daqui, não. Sou coreógrafa, porque crio mais do que danço, mas acho que sou dançarina também, porque não consigo não dançar. O tempo máximo de exílio que consegui me impor foi de sete meses, repartidos entre o Rio e Curitiba, de onde acabei me expulsando, por causa do frio e da agonia. Da formação, acho difícil falar. É que como minha formação acadêmica se resume a um curso incompleto de Pedagogia e meu autodidatismo, por sua vez, bebeu num monte de coisa e gente, descubro em mim alguma preguiça. Mas vamos lá. As técnicas que estudei com mais continuidade: dança moderna e sapateado, com passeios recorrentes pelo teatro. Ballet clássico, mamãe contava que nunca consegui fazer. Saía da sala chorando, com medo da varinha da professora, devia ser. Aliás, o prazer de fazer uma aula de ballet clássico é descoberta recente, graças ao Flávio Sampaio.

A dança? Primeiros contatos, impressões, formações.

Houve o medo da paralisia, sempre presente. Meus problemas de joelho, que começaram desde 18, 19 anos, sempre me colocaram diante da possibilidade de não poder mais dançar. Isso foi uma impressão forte e decisiva, porque me fez largar muito do que sabia corporalmente, sob o risco de me machucar mais seriamente, e me jogou na busca por algo que não sabia o que era, mas que sabia que não possuía. À medida que dançava menos no palco (meus joelhos não me deixavam ansiar por dançar virtuosamente com grandes grupos), dava mais aulas e coreografava. Trabalhar em sala, insistente e exaustivamente, era a forma que eu tinha de continuar dançando. Considero brutal meu encontro com Tânia Nardini, que dirigiu o primeiro trabalho da Companhia. Seis meses de uma experiência profunda e transformadora, que serviu para reconstruir meu desejo, a partir dali. Essa foi uma grande sorte, fatal e irreversível: aprender, desde o início, que havia um novo espaço a ser buscado, o qual eu gostaria de habitar, um lugar onde uma nova/velha ética lê a vida como indissociável do processo de trabalho.

Fortaleza como ponto de partida? Sua relação com a cidade.

Pensar em como meu corpo se construiu: mais importante, talvez, fosse falar dos livros que li, das viagens, que sempre foram muitas (serra, Canindé, praia), da convivência com grupos e tribos muito diversos, de cheiros e cores que habitaram insistentemente meus dias e minhas noites, tudo ficando impresso no meu corpo. Porque “o corpo não tem memória, ele é memória”, já insistiu Grotowski. Fortaleza está em tudo isso. Saía por curiosidade. Ver outros cantos sempre é bom. Mas nunca por precisão, de verdade. Sempre que fui, foi pensando em voltar. E os grandes impactos, sofri foi por aqui mesmo. Os grandes afetos também.

A paixão pela dança: trabalho e sentido de fé: amor.

Dançar, eu sempre dancei. Não consigo me lembrar de outro jeito de andar. Primeiro por prazer, muito prazer, depois por necessidade: para lembrar quem sou e onde estou, para mudar de idéia ou de foco, para ser uma pessoa mais tolerável, para aprender a amar, para reencontrar minha alegria a cada dia e para conseguir não endurecer. O corpo se movendo é um olho que sempre aponta para várias direções, que não vê só de uma banda. Esse vasculhamento diário de meus espaços internos determina cada gesto meu, a economia ou o exagero, o cotidiano ou o extracotidiano. Não sei se é paixão, porque a paixão parece entorpecer os sentidos. E a dança para mim é muito mais um estado de alerteza do que de dormência. Não é minha lucidez. Antes, até me ajuda a suportar essa lucidez. Enfrento melhor o medo de ser dilacerada.

A cia...

A Companhia de Arte Andanças. Então foi assim: no início, 1991, bailarinas que ansiavam por uma pesquisa de linguagem, por outra forma de contar/dançar. Além de coreografar, também dirigia a Cia. Tudo muito cedo e eu, muito nova, com 21 anos. Tateando e farejando o caminho, com dolorosos tropeços e sem qualquer garantia, munida só de uma coragem ingênua. Quanto mais buscávamos o que não tínhamos, mesmo sem saber – sabíamos o que NÂO era – mais nos afastávamos dos que antes eram nossos pares. Conversas intensas com lugares distantes se constituíram. O teatro (Brecht, no começo. Depois, Artaud, Grotowski e Barba) parecia fornecer um referencial teórico irresistivelmente mais consistente do que o material bibliográfico sobre dança (coisas do tipo “eu e minha sapatilha”). Eu e Marília Bezerra, querendo um mundo de descobertas físicas que as técnicas de dança nunca nos mostraram, mas que no entanto estavam ali, óbvias e sedutoras. Novas idéias despertaram novas paixões, que por sua vez exigiam novos corpos, cobravam uma nova forma de movimento, cada vez mais orgânico, mais visceral e com menos artifício. A técnica da dança foi parecendo cada vez mais prescindível, incômoda até. Atores se chegaram. Encontrar possibilidades em corpos crus, isso poderia nos levar a descobrir o que nos interessava: o que ligava uma forma a outra. O fluxo, o impulso, a dilatação de energia, a qualidade de movimento, o “entre” as formas.

Os espetáculos

Os dois primeiros trabalhos da Companhia foram musicais infantis, porque nos parecia mais difícil falar às crianças da forma como gostaríamos, e a dificuldade justificava o esforço: “Dando no pé” (1992), dirigido pela Tânia Nardini, e “O Circo no Picapau Amarelo” (1994), já dirigido por mim. Depois, “Capitães da Areia” (1995), “Andando em Boa Companhia” (1996) e “Conte lá, que eu danço cá” (1997). Mais recentemente teve “Furdunço” (2000). Para o Colégio de Dança do Ceará, montei dois trabalhos que acabo considerando da Cia., também, por causa do elenco e da pesquisa, é tudo o mesmo, tudo sou eu, tudo somos nós: “A Dança de Clarice” (1999), livremente inspirado no livro “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres”, de Clarice Lispector e “Vagarezas e súbitos chegares” (2000), livremente inspirado nas obras de Adélia Prado e Elida Tessler. Outros trabalhos existem. E sinto algum alívio, repensando todos, porque gosto de constatar que conseguimos manter fidelidade ao que realmente nos interessava, mesmo sendo o caminho mais difícil. Descubro uma coerência nesse caminho, e isso me inspira mais respeito pelo grupo e pelo que construímos, um novo território. Um espaço de trabalho cênico é polarizador de trocas muito intensas, e por isso mesmo deve ser sagrado, de outra forma não o suportaríamos. Em meio a tantas diferenças e intensidades, a disciplina parece indicar o único caminho possível para a liberdade. O que conquistamos, de nós para nós mesmos, é mais do que qualquer um de nós possa falar ou saber. A diversidade reflete nitidamente uma busca, uma inquietude que foi aceita e absorvida como forma de andar.

Meu trabalho, minha pesquisa de linguagem e a dança contemporânea

Minha dança sempre foi muito mais determinada por uma necessidade do que por fatores externos favoráveis. Quanto mais me sentia limitada em meus movimentos, graças aos problemas de mobilidade que me surgiam (ou que acabava criando para mim mesma), mais precisava descobrir novas possibilidades de continuar me movendo. Houve um momento em que nada, absolutamente nada da minha formação técnica parecia caber no meu corpo. Pouco era exeqüível sem risco, e o que conseguia realizar não me satisfazia. A vontade de dizer/contar/dançar coisas era intensa e desproporcional à minha limitação física. E justo por causa de minha limitação física, precisava saber muito mais sobre o que queria dizer, até encontrar uma forma adequada de lapidar essas imagens/movimentos em corpos alheios. Ter que descobrir uma forma possível, prazerosa e menos sofrida de dançar, me deu nova instrumentalização. Neguei a técnica grudada no meu corpo e quis outras. Mas cabe dizer: só pude negar a técnica, porque tinha uma técnica. E penso mesmo se a neguei por um tempo considerável, ou se não foi só um surto. Acho que absorvi de outros cantos e transformei em sensações no meu corpo. A técnica deixou de ser um fim, e passei a entendê-la como meio. Por tudo isso, não considero realmente que a dança contemporânea tenha sido opção. Era caminho inevitável, porque, com meu corpo, dançar sempre foi um risco, renovado a cada dia de trabalho, sempre foi aqui e agora. Cheguei à vontade de um minimalismo, de uma economia de gestos e de símbolos que hoje me parecem essenciais.

O papel, o trabalho, a contribuição...

Primeiro: o que faço é dança. Não me interessa no que mais pensem em me incluir. Segundo: só não há gratuidade. Tudo é bem mais elaborado do que aparenta. Algumas opções estéticas são decisivas, outras apenas inofensivas, mas são opções, não há inconseqüência. Até para lidar com o acaso no espaço cênico preciso de um apuro técnico, de um conhecimento prévio. E nunca acaba, nunca acaba. Cada vez que me pergunto como chegar a tal movimento se abrem muitas possibilidades, cada qual mais irresistível, mais sedutora, e todas precisam ser experimentadas. Para que? Às vezes, só para ver, só para saber, o resultado no palco é o que menos importa, num instante. Criar é algo que, quando se faz hábito, nos deixa cada vez mais avessos à concessões. A voracidade com que o processo criativo se constrói parece nos conferir um acerta integridade. Ser fiel a isso, me parece a única possibilidade de existência para o artista.

Outros Diálogos...

Os diálogos sempre existem. Gosto e preciso deles, é onde me abasteço. A música não é condição primeira para o movimento – embora o ritmo, sim – mas tem uma função importante, para mim, porque me inspira, desperta mais rápido um estado de atenção. Uma música bem escolhida, num processo de trabalho, tem o poder de dilatar os sentidos, acordar sensações. Já trabalhei com o silêncio, porque precisei dele, quis experimentá-lo. É possível encontrar silêncio no movimento, economia, mesmo com a música, assim como é possível encontrar sons mesmo com a música silenciada. É possível, ainda, que a música sirva apenas para construir uma atmosfera, que os corpos em movimentos permaneçam descolados dela, num ritmo próprio e orgânico. Nada é mais pré-condição para consistência, tudo já foi feito e experimentado. Acredito que agora se trata de sabermos o que usar, quando e como. Porque tudo está aí, para ser usado. A organicidade é que justifica o uso, para mim. Mesmo que o resultado cênico seja traduzido com estranhamento, e não com prazer. Freqüentemente, construo seqüências de movimento numa determinada música, e no palco aparece outra. A não ser nos primeiros espetáculos infantis e em “Vagarezas e súbitos chegares”, não trabalhei com cenários. No máximo, trabalhei com objetos. Não senti vontade, minha atenção permanecia nos corpos. Nos infantis, visualizei com facilidade. Em “Vagarezas...”, à medida em que me aproximava e conhecia as obras de Elida Tessler, mais percebia o meu trabalho impregnado disso tudo. Num dado momento, já não bastava que o trabalho dela me servisse de inspiração, era imprescindível que ele estivesse no palco, junto com o movimento. E a construção desse espaço devia ser feita por todas as mãos envolvidas. Foi um trabalho difícil, pelas circunstâncias que se impuseram, mas agraciado por grandes instantes de ternura. O vídeo aparece pouco nos trabalhos, desproporcionalmente a meu fascínio por ele, porque também é imagem em movimento. E sempre apareceu como cenário, como forma de imprimir mais um fator sinestésico à cena, contrapondo ou reforçando o movimento que os corpos realizavam. A palavra está sempre: como suporte que não aparece, como delineador dramatúrgico, como texto, de todas as formas ela sempre está. A literatura também me inspira bastante, porque a dança é o que não pode ser dito ou descrito. Para tocar nessa dimensão impalpável, por vezes recorro a seu extremo: as palavras capturadas. Ainda não realizei um trabalho utilizando texto e voz como gostaria. Está latente, eu sei.

Os bons encontros...

Também houve um tempo de muita solidão. Criar é de uma extrema solidão. Durante muito tempo fui marcada pela sensação massacrante de não ter com quem trocar, a não ser com as pessoas da Cia. Ter essas pessoas, ainda que parecêssemos mesmo uma ilha, isolados com água por todos os lados, já era um consolo, mas não supria toda a necessidade. As viagens e os novos contatos, avidamente firmados, prepararam o terreno para que ajudássemos a construir o Colégio de Dança do Ceará, dirigido por Flávio Sampaio e Ernesto Gadelha, espaço de troca fundamental, já defendido por todo o Brasil. Graças a isso, discutir sobre a dança e questões pertinentes a ela tornou-se um hábito diário e intenso. Um bom encontro parece sempre ser potencializador de outro. O bom encontro com Alexandre Veras, videomaker, se configurou numa troca fecunda, primeiro como tímidas conversas sobre o fascínio em comum que ambos carregávamos pela Antropologia Teatral de Eugênio Barba, depois como grupo de estudos sobre outros temas e com outras pessoas, que viriam a se reunir de uma forma mais organizada, originando o Alpendre: Beatriz Furtado, Eduardo Frota, Luis Carlos Sabadia, Manoel Ricardo de Lima, Carlos Augusto Lima e Sólon Ribeiro. “Palco de brincadeiras e invenções, lugar do espírito de alegria e criação. Lugar de pouso e pausa para os que passam, lugar de acolhida e flerte com a alteridade.”

Dignidade...

Dignidade, penso que há, sim. Há um cuidar, como um carinho suspenso que nos sobrevoa, sempre pronto a surgir. Já tentei me livrar disso, que acho romântico demais. Não adianta. O corpo sempre me inspira um olhar terno, apesar de toda a gama de intensidades que vem junto. Percebo que mesmo meus movimentos mais bruscos acabam por construir uma ternura. É assim que vivo e componho: gesto por gesto, atrás do que liga uma forma à outra, esperando que nessa economia se revele o essencial. Tudo vai se juntando, envolvendo outros corpos e percepções até um toque, que pode até ser leve e muito sutil. No fundo, sinto um grande carinho pelas pessoas. Carinho excessivo e insuportável, às vezes. Mas é o que acaba vazando, no meu trabalho. Não é a paixão pela dança. É encantamento pela vida. Isso me amaldiçoa e me salva.

Palavras de Élida Tessler

(Obra: Inda, 1996.)

A ESPERA DE UM FUTURO INCERTO:o escorrimento do tempo e sua cor úmida . Criar é não se adequar à vida como ela é. Waly Salomão Você encontrará aqui uma escrita testemunha. Este texto assume a forma de um diário de bordo, tão comum entre os artistas plásticos. 0 fato de haver transcrito aqui as passagens das anotações feitas durante minha estadia na França responde uni pouco à idéia de entrecruzamento. 0 X traduz um percurso. Um caminho cruzado que liga o visual ao textual e vice- versa. Um cruzamento na arte. Por que nós escrevemos? 0 poeta brasileiro, Waly Salomão, propõe em um de seus poemas a seguinte resposta: Escrever é uma vingança contra a perda. 1 Como muitos outros, e principalmente dentro do universo feminino, tenho a necessidade de registrar de uma forma ou de outra, fragmentos do tempo vivido. Uma espécie de memória materializada. Para isto, guardo sempre comigo uma caderneta de anotações. Gosto muito destes minúsculos espaços vazios, estas “espécies de espaços “, como dizia Georges Perec, um quase nada que se torna um tesouro particular, íntimo e por vezes histórico. Então, por um determinado período, possuí um caderno especialmente dedicado aos momentos de espera: não me era permitido escrever senão esperando a hora mamada no médico, por exemplo, ou na sala de espera da Biblioteca Nacional, ou na fila para entrar no museu, ou na estação de trens, no aeroporto, ou no café... Eu também tinha o direito de escrever enquanto meus trabalhos, encharcados de água no ateliê ,esperavam seu momento de secagem. Eu escrevia enquanto eu não tinha nada mais a fazer senão esperar as diversas reações entre os materiais utilizados. Havia esperas que não eram mudo longas, e outras, prolongadas quase ao infinito. 0 fato de anotar um pensamento construído no tempo durante o qual esperamos alguma coisa ou alguém me fez aprender muito. Hoje, eu penso saber conviver melhor com o sentimento da dúvida. Toda espera é incerta. A perda é uma temática que me interessa bastante. Durante alguns anos, desenhei seguindo modelo, sobretudo coisas e cenas cotidianas. Uma espécie de fotografia rudimentar: uma mulher em sua cama, uma mesa de trabalho com todos os seus respectivos objetos, um telefone azul, sapatos e escovas de cabelos. Anotações sobre a vida. Até o momento onde me senti completamente perdida no emaranhado de fios pretos e brancos das cerdas de uma escova de cabelo, do desenho e de uma suposta realidade. Minha prática é aqui, então, uma dupla vingança: eu escrevo e eu desenho. Eu crio formas no espaço. Meu trabalho de ateliê consiste em recuperar alguma coisa perdida. Uma perda essencial. A perda primordial. Uma perda que tem a cor específica da ferrugem. Trabalho sobretudo com papéis de fina espessura, tecidos brancos, gaze, materiais metálicos como o fio de ferro, de cobre, de latão... com palha de aço, pregos, grades ou mesmo pó. 0 gesto principal é o de depositar alguma coisa sobre outra, e acreditar no interstício. Utilizo muita cola, de qualidades diversas. Prefiro as orgânicas: cola de pele ou de cartilagem de animais, por exemplo. A água faz parte de meus elementos. Ela é a responsável pela modificação das coisas. Ela é testemunha do tempo que passa. Sem ela, certamente eu não teria tantas manchas. Meus desenhos são embebidos em água, e eu devo sempre esperar que ela evapore e que a ferrugem surja. As vezes, eu a controlo. Outras, deixo a obra na espera de um futuro incerto. (Élida Tessler)

Falas inacabadas para Élida Tessler



(1ª carta escrita à artista plástica gaúcha Élida Tessler, em agosto/99, sob o impacto do 1º encontro. a partir daí, iniciamos correspondência e fluxo de afetos, que gerou o espetáculo Vagarezas e Súbitos Chegares, livremente inspirado nas obras de Adélia Prado e da própria Élida, que assinou a concepção visual. O espetáculo, realizado pela Cia da Arte Andanças, estreou originalmente no Clégio de Dança do Ceará, em 2000.)

Estou embebida por Adélia Prado, por isso começo por ela:
“Quero saber: se der o leite sem a nata, diminui-se o mérito da minha oferta? Dar a vida é mais fácil para mim que dar a nata do leite, os ovos, a lata de óleo para a Alvina. Quero perder a vida, não o que me parece substanciais pedaços dela, vazando de mim como água entre os dedos. (...)”
Domingo, dia seguinte ao primeiro encontro, dia seguinte às primeiras falas inacabadas da conversa/vida poética.
Acordei pensando: que bom que vi muitos pedaços de coisas, ainda que imóveis, limitados por um quadrado na parede (que dependendo do olho até se transforma numa moldura bonita), deslocados de sua geografia. Que bom que não vi uma obra só, que pude tocar em vários instantes orgânicos de uma pessoa, porque isso me dá muito mais do que a contemplação de uma obra, me dá: uma pessoa.
Aos visionários de plantão, tenho sempre a vontade de lembrar a dimensão humana de todas as coisas, das pedras, dos panos, dos corpos. Porque nada mesmo do que se cria, do que se transforma (e tudo se cria, tudo se transforma, até nós), pode se ver livre dessa dimensão. Um artista nunca é uma obra só, é tudo que cria e transforma, e a imanência disso: tudo o que nunca vai criar e nem transformar.
Dessa forma, analisar uma obra de arte chega a me parecer desumano, se isso se constitui somente num processo de racionalização que tem como pretensão encerrar-se em si mesmo. Oco. Desnecessário. Cansativo.
“No quarto das meninas tem uma fronha cheia de meias desaparelhadas, preciso organizar as gavetas, reforçar as costuras da minha calça comprida e meu desejo é ter o resto da vida sem nenhuma perturbação, pra emendar os pedaços de tudo que já senti e pensei, fazer uma peça inteira, começo meio e fim. Quando faço uma boa música, de certa forma ela cristaliza pra mim alguma coisa, me religa a uma parte da qual fui separada. Passarinho só canta, abelha só faz mel, flor fica só sendo flor. E eu? (...)”
É que lido com o corpo. O meu e o dos outros. Criar formas com meu corpo e com outros corpos me pede uma lucidez, senão eu enlouqueço. Que cada vez que me movo, movo tudo o que sou, tudo o que fui e serei, tudo o que gostaria de ser.
Volta, Adélia...
“Descobri e contei a Pedro: o corpo é humilde, o corpo é muito humilde. Ainda escrevo uma tese que parecerá marota: de como são bons e agradáveis os gases e odores do corpo e de como nos deleitamos com eles sem ousar confessa-lo. Ora o que é o corpo? Necessitarei de quantas paixões para amansar meu orgulho e me deixar ver de frente, de costas, de quatro, comendo, descomendo, sem turvar meus olhos? Para isto caminho. Alguém me ensinará. Uma paixão, uma grande paixão me tomará de tal forma que tanto se me dará ser...”
Cada vez que me movo, chacoalho a poeira do que está impresso na minha carne. Por isso preciso de uma contenção. Economia de energia: voz, gesto, pensamento. Pensar não me dói – não mais. Refletir sobre as coisas me alimenta. Desde que problematizar questões não me vicie, senão isso gera uma paralisia. Senão não produzo. Ou melhor: senão não danço! E de tudo que eu possa fazer ou pensar, isso me parece o mais grave.
Tem uma diferença muito sutil, para mim, embora vital: produzo porque gosto, mas danço porque preciso, porque é no meu movimento que nasce o ar que respiro. Minha dança é ao mesmo tempo meu coração batendo e uma fé. Isso é uma essencialidade da qual dependo para existir, e ela me deixa com menos espaços para serem ocupados com “melancolias não-essenciais” (Calvino).
“Nunca achei que tivesse imaginação, pois só lido com o que existe. (...)”
O feminino, na Adélia, nunca me pareceu feminista, panfletário de direitos arrancados ou nunca concedidos. Na vida, sim, algumas vezes sinto um impulso violento, resquício talvez de longos anos de abnegada submissão, herança de todas as mulheres de todos os tempos do mundo. Mas quando penso em dizer alguma coisa com meu trabalho, em produzir um significado com minha dança, o universo em que transito é sempre o da mulher sendo, e não o da mulher não-sendo. A mulher sendo é algo tão grande, que para conseguir mostrar um pouco disso preciso de mínimos: pequenos gestos (nascendo ou explodindo), silêncios, coisinhas, ações, fluxos, respiração, objetos: COTIDIANO.
A mulher sendo é minha contemporaneidade, sou eu, é você, é Clarice. É Adélia:
“Alguma coisa me escapa neste início de compreensão, esforço que não me agrada. Pressiono um desentupidor na pia da cozinha e vêm à tona grãos inchados, arroz com casca, fragmentos compactos de sabão e gordura e, sem avisos, um estado de sentir, ou de ver, não sei, que já me ocorreu olhando fotografias antigas de manequins posando em paisagens de inverno e outras mais coisas insólitas. É mais que felicidade, mais que prazer. É: prestes a explodir. É: todo ser é belo. É: tudo é tão transitório, desfatiguemo-nos. É a unidade de tudo num relance apanhada. (...)”
Teu trabalho me trouxe silêncios delicados. Imagens fortes e no entanto fluidas. (Como uma imagem pode parecer ao mesmo tempo tão sólida e tão maleável?)
A transformação visível dos objetos me trouxe viva minha própria condição de barro. Fluxos orgânicos que sou eu. Estados da matéria que sou eu. Olho que vê numa toalha estendida num varal a suspensão da vida: sou eu.
“A vida é às vezes leve e boa como será, às vezes experimento como serei, um ser inteiro repousando em sua própria unidade, que não se lembra de si. (...)”
E – engraçado, isso! - as cores me pareceram sempre presentes, apesar de não explicitadas.
Meu coração sorriu, nas tuas “múltiplas bondades cantadas”.
Obrigada!
“De vez em quando deus me tira a poesia
Olho pedra, vejo pedra mesmo.
O mundo, cheio de departamentos,
Não é a bola bonita caminhando solta no espaço.,
Eu fico feia, olhando espelhos com provocação,
Batendo a escova com força nos cabelos,
Sujeita à crença em presságios.
Viro uma péssima cristã.”
(”Paixão”, de Adélia Prado)

Ah! Os outros trechos de Adélia são do livro “Os componentes da banda”.
Espero que ela te sugira cheiros, tão instigadoramente saborosos como os que a mim me invadem.
Que este primeiro encontro, marcado por tantas falas inacabadas, seja apenas o primeiro de muitos.
Abraços, para você e Edson, até breve, eu espero...

Andréa Bardawil Campos, 08.08.99 (Após Uma Conversa: poesia)

De encontros e de possíveis

Nesta época contemporânea, tudo habita em tudo, tudo se contagia de tudo. Aceleração e excesso são os signos atuais do cotidiano.
Cada vez mais solitários, estamos sempre em trânsito, mas poucas experiências deslocam realmente nossa percepção, nossas idéias e visões de mundo. Distraídos ou exageradamente concentrados, corremos de um problema a outro, a cada novo dia.
Dançar, para mim, sempre foi existir. É mais do que uma forma de viver, é o próprio entendimento do que pode ser a vida, condição de possibilidade num mundo que sempre nos apresenta impossíveis.
Primeiro como bailarina, depois como coreógrafa, me pergunto: como podemos aproveitar tudo isso, para a dança que dançamos, criamos ou pensamos? Será possível constituir, a partir de uma ética da amizade – como quereria Michel Foucault - um espaço criativo potente, que se converta numa nova condição de possibilidade para nossa existência? Como escapar dos processos de captura de subjetividade a que todos estamos sujeitos numa sociedade de controle, como garantir a existência de um campo intensivo de criação, linha de fuga que nos possibilitasse a re-invenção cotidiana de nossos espaços internos e externos?
A Dança não se restringe às suas técnicas codificadas, e convém lembrar que, atualmente, quando trazemos para a dança a noção de corporeidade, as abordagens corporais e técnicas se multiplicam ao infinito. Esse fato contribui para que a noção de coreografia, tal e qual a utilizamos tradicionalmente – uma seqüência de passos organizada no espaço e executada harmoniosamente numa música – não dê mais conta da complexidade de fatores implicados na composição coreográfica.
Novas formas de organizar elementos e informações nos trazem as mais diferentes cenas e possibilidades, que buscam estratégias outras para atingir nossa percepção e provocar deslocamentos.
No entanto, acredito: generosidade é fundamental! A dança é experiência que se revela maior quão mais compartilhada seja.
Antes de ser técnica – e inclusive sendo – a dança é mais, muito mais que o reduzidíssimo caráter competitivo que a maioria das academias acaba por conferir à sua prática. É produção de alegria e subjetividade, invenção de si e do mundo, desterritorialização vertiginosa, mas também delimitação de novos territórios existenciais e afetivos.
Segundo o filósofo Gilles Deleuze, o uso mais rico que alguém pode fazer de sua solidão é “servir-se dela como de um meio de encontro, fazer uma linha ou um bloco passar entre duas pessoas, produzir todos os fenômenos de dupla captura, mostrar o que é a conjunção.”
Adotei o encontro como estratégia para um processo criativo, e minha produção é determinantemente marcada pela potência dos encontros que me permito vivenciar. Interessam-me os afetos de que somos capazes. Bons encontros se constituem mais na possibilidade de habitar um mesmo tempo, do que de habitar um mesmo espaço.
Cultivar a permanência do olhar nas fissuras do cotidiano – corpos e vidas – possibilita-nos a experiência de um tempo que escorre, e não apenas se precipita. Nessa dimensão de tempo escorredouro e dilatado - não-escorregadio – o espaço entre se configura, entre-imagem, entre-movimento, entre-lugar.
Compor: fazer parte de; formar, constituir, pôr em ordem; constituir-se em...O que torna um movimento especial a ponto de virar dança é minha insistência em não perdê-lo. Exercício de contrários: disciplina e flexibilidade, firmeza e tolerância, humildade e impetuosidade, paciência e urgência, intuição e conhecimento, generosidade e egoísmo, cumplicidade e solidão.
Num processo de atualização ininterrupto, eis como o ato de dançar pode constituir-se num entre-lugar: como um regime de disponibilidade onde coloca-se um corpo, independente de sua localização geográfica, uma possibilidade de linha de fuga, num tempo intensivo, potencializador dos encontros e dos afetos.
Um artista nunca é uma obra só, é tudo o mais que cria e transforma, e a imanência disso: tudo o que nunca vai criar e nem transformar. Para além do que se constituiu chamar de “artes da presença”, uma parte considerável do processo de fruição estética não se dá na composição, e escapa do criador. A fruição estética se dá sempre no corpo em relação.
Conosco, ainda, Gilles Deleuze: “De que afetos você é capaz? Experimente, mas é preciso muita prudência para experimentar. Vivemos em um mundo desagradável, onde não apenas as pessoas, mas os poderes estabelecidos têm interesse em nos comunicar afetos tristes. (...) Não é fácil ser um homem livre: fugir da peste, organizar encontros, aumentar a potência de agir, afetar-se de alegria, multiplicar os afetos que exprimem ou envolvem o máximo de afirmação.”
Desta forma, percebemos que a dança pode não ser o que mercadologicamente se espera dela. Melhor é quando entendemos que é justamente o contrário: a dança, vivenciada, produzida e reinventada a cada dia, como movimento e como pensamento, num espaço ético, passível sempre de novos e bons encontros, pode – e deve! - ser sempre o que escapa.

sexta-feira, 6 de março de 2009

De afetos

Nossa inquietação encontra margem nas palavras de Gilles Deleuze:
“De que afetos você é capaz? Experimente, mas é preciso muita prudência para experimentar. Vivemos em um mundo desagradável, onde não apenas as pessoas, mas os poderes estabelecidos têm interesse em nos comunicar afetos tristes.(...) Não é fácil ser um homem livre: fugir da peste, organizar encontros, aumentar a potência de agir, afetar-se de alegria, multiplicar os afetos que exprimem ou envolvem um máximo de afirmação.”
E vira dança.