sábado, 7 de março de 2009

Palavras de Élida Tessler

(Obra: Inda, 1996.)

A ESPERA DE UM FUTURO INCERTO:o escorrimento do tempo e sua cor úmida . Criar é não se adequar à vida como ela é. Waly Salomão Você encontrará aqui uma escrita testemunha. Este texto assume a forma de um diário de bordo, tão comum entre os artistas plásticos. 0 fato de haver transcrito aqui as passagens das anotações feitas durante minha estadia na França responde uni pouco à idéia de entrecruzamento. 0 X traduz um percurso. Um caminho cruzado que liga o visual ao textual e vice- versa. Um cruzamento na arte. Por que nós escrevemos? 0 poeta brasileiro, Waly Salomão, propõe em um de seus poemas a seguinte resposta: Escrever é uma vingança contra a perda. 1 Como muitos outros, e principalmente dentro do universo feminino, tenho a necessidade de registrar de uma forma ou de outra, fragmentos do tempo vivido. Uma espécie de memória materializada. Para isto, guardo sempre comigo uma caderneta de anotações. Gosto muito destes minúsculos espaços vazios, estas “espécies de espaços “, como dizia Georges Perec, um quase nada que se torna um tesouro particular, íntimo e por vezes histórico. Então, por um determinado período, possuí um caderno especialmente dedicado aos momentos de espera: não me era permitido escrever senão esperando a hora mamada no médico, por exemplo, ou na sala de espera da Biblioteca Nacional, ou na fila para entrar no museu, ou na estação de trens, no aeroporto, ou no café... Eu também tinha o direito de escrever enquanto meus trabalhos, encharcados de água no ateliê ,esperavam seu momento de secagem. Eu escrevia enquanto eu não tinha nada mais a fazer senão esperar as diversas reações entre os materiais utilizados. Havia esperas que não eram mudo longas, e outras, prolongadas quase ao infinito. 0 fato de anotar um pensamento construído no tempo durante o qual esperamos alguma coisa ou alguém me fez aprender muito. Hoje, eu penso saber conviver melhor com o sentimento da dúvida. Toda espera é incerta. A perda é uma temática que me interessa bastante. Durante alguns anos, desenhei seguindo modelo, sobretudo coisas e cenas cotidianas. Uma espécie de fotografia rudimentar: uma mulher em sua cama, uma mesa de trabalho com todos os seus respectivos objetos, um telefone azul, sapatos e escovas de cabelos. Anotações sobre a vida. Até o momento onde me senti completamente perdida no emaranhado de fios pretos e brancos das cerdas de uma escova de cabelo, do desenho e de uma suposta realidade. Minha prática é aqui, então, uma dupla vingança: eu escrevo e eu desenho. Eu crio formas no espaço. Meu trabalho de ateliê consiste em recuperar alguma coisa perdida. Uma perda essencial. A perda primordial. Uma perda que tem a cor específica da ferrugem. Trabalho sobretudo com papéis de fina espessura, tecidos brancos, gaze, materiais metálicos como o fio de ferro, de cobre, de latão... com palha de aço, pregos, grades ou mesmo pó. 0 gesto principal é o de depositar alguma coisa sobre outra, e acreditar no interstício. Utilizo muita cola, de qualidades diversas. Prefiro as orgânicas: cola de pele ou de cartilagem de animais, por exemplo. A água faz parte de meus elementos. Ela é a responsável pela modificação das coisas. Ela é testemunha do tempo que passa. Sem ela, certamente eu não teria tantas manchas. Meus desenhos são embebidos em água, e eu devo sempre esperar que ela evapore e que a ferrugem surja. As vezes, eu a controlo. Outras, deixo a obra na espera de um futuro incerto. (Élida Tessler)

Nenhum comentário:

Postar um comentário