sábado, 7 de março de 2009

Entrevista a Manoel Ricardo de Lima



(Respostas concedidas a Manoel Ricardo de Lima, em 2000, para a revista Afinidades Eletivas.)

(Élida Tessler/Obra Você me dá sua palavra? - 2004)

Onde nasceu e formação

Nasci em Fortaleza mesmo e não arredei muito o pé daqui, não. Sou coreógrafa, porque crio mais do que danço, mas acho que sou dançarina também, porque não consigo não dançar. O tempo máximo de exílio que consegui me impor foi de sete meses, repartidos entre o Rio e Curitiba, de onde acabei me expulsando, por causa do frio e da agonia. Da formação, acho difícil falar. É que como minha formação acadêmica se resume a um curso incompleto de Pedagogia e meu autodidatismo, por sua vez, bebeu num monte de coisa e gente, descubro em mim alguma preguiça. Mas vamos lá. As técnicas que estudei com mais continuidade: dança moderna e sapateado, com passeios recorrentes pelo teatro. Ballet clássico, mamãe contava que nunca consegui fazer. Saía da sala chorando, com medo da varinha da professora, devia ser. Aliás, o prazer de fazer uma aula de ballet clássico é descoberta recente, graças ao Flávio Sampaio.

A dança? Primeiros contatos, impressões, formações.

Houve o medo da paralisia, sempre presente. Meus problemas de joelho, que começaram desde 18, 19 anos, sempre me colocaram diante da possibilidade de não poder mais dançar. Isso foi uma impressão forte e decisiva, porque me fez largar muito do que sabia corporalmente, sob o risco de me machucar mais seriamente, e me jogou na busca por algo que não sabia o que era, mas que sabia que não possuía. À medida que dançava menos no palco (meus joelhos não me deixavam ansiar por dançar virtuosamente com grandes grupos), dava mais aulas e coreografava. Trabalhar em sala, insistente e exaustivamente, era a forma que eu tinha de continuar dançando. Considero brutal meu encontro com Tânia Nardini, que dirigiu o primeiro trabalho da Companhia. Seis meses de uma experiência profunda e transformadora, que serviu para reconstruir meu desejo, a partir dali. Essa foi uma grande sorte, fatal e irreversível: aprender, desde o início, que havia um novo espaço a ser buscado, o qual eu gostaria de habitar, um lugar onde uma nova/velha ética lê a vida como indissociável do processo de trabalho.

Fortaleza como ponto de partida? Sua relação com a cidade.

Pensar em como meu corpo se construiu: mais importante, talvez, fosse falar dos livros que li, das viagens, que sempre foram muitas (serra, Canindé, praia), da convivência com grupos e tribos muito diversos, de cheiros e cores que habitaram insistentemente meus dias e minhas noites, tudo ficando impresso no meu corpo. Porque “o corpo não tem memória, ele é memória”, já insistiu Grotowski. Fortaleza está em tudo isso. Saía por curiosidade. Ver outros cantos sempre é bom. Mas nunca por precisão, de verdade. Sempre que fui, foi pensando em voltar. E os grandes impactos, sofri foi por aqui mesmo. Os grandes afetos também.

A paixão pela dança: trabalho e sentido de fé: amor.

Dançar, eu sempre dancei. Não consigo me lembrar de outro jeito de andar. Primeiro por prazer, muito prazer, depois por necessidade: para lembrar quem sou e onde estou, para mudar de idéia ou de foco, para ser uma pessoa mais tolerável, para aprender a amar, para reencontrar minha alegria a cada dia e para conseguir não endurecer. O corpo se movendo é um olho que sempre aponta para várias direções, que não vê só de uma banda. Esse vasculhamento diário de meus espaços internos determina cada gesto meu, a economia ou o exagero, o cotidiano ou o extracotidiano. Não sei se é paixão, porque a paixão parece entorpecer os sentidos. E a dança para mim é muito mais um estado de alerteza do que de dormência. Não é minha lucidez. Antes, até me ajuda a suportar essa lucidez. Enfrento melhor o medo de ser dilacerada.

A cia...

A Companhia de Arte Andanças. Então foi assim: no início, 1991, bailarinas que ansiavam por uma pesquisa de linguagem, por outra forma de contar/dançar. Além de coreografar, também dirigia a Cia. Tudo muito cedo e eu, muito nova, com 21 anos. Tateando e farejando o caminho, com dolorosos tropeços e sem qualquer garantia, munida só de uma coragem ingênua. Quanto mais buscávamos o que não tínhamos, mesmo sem saber – sabíamos o que NÂO era – mais nos afastávamos dos que antes eram nossos pares. Conversas intensas com lugares distantes se constituíram. O teatro (Brecht, no começo. Depois, Artaud, Grotowski e Barba) parecia fornecer um referencial teórico irresistivelmente mais consistente do que o material bibliográfico sobre dança (coisas do tipo “eu e minha sapatilha”). Eu e Marília Bezerra, querendo um mundo de descobertas físicas que as técnicas de dança nunca nos mostraram, mas que no entanto estavam ali, óbvias e sedutoras. Novas idéias despertaram novas paixões, que por sua vez exigiam novos corpos, cobravam uma nova forma de movimento, cada vez mais orgânico, mais visceral e com menos artifício. A técnica da dança foi parecendo cada vez mais prescindível, incômoda até. Atores se chegaram. Encontrar possibilidades em corpos crus, isso poderia nos levar a descobrir o que nos interessava: o que ligava uma forma a outra. O fluxo, o impulso, a dilatação de energia, a qualidade de movimento, o “entre” as formas.

Os espetáculos

Os dois primeiros trabalhos da Companhia foram musicais infantis, porque nos parecia mais difícil falar às crianças da forma como gostaríamos, e a dificuldade justificava o esforço: “Dando no pé” (1992), dirigido pela Tânia Nardini, e “O Circo no Picapau Amarelo” (1994), já dirigido por mim. Depois, “Capitães da Areia” (1995), “Andando em Boa Companhia” (1996) e “Conte lá, que eu danço cá” (1997). Mais recentemente teve “Furdunço” (2000). Para o Colégio de Dança do Ceará, montei dois trabalhos que acabo considerando da Cia., também, por causa do elenco e da pesquisa, é tudo o mesmo, tudo sou eu, tudo somos nós: “A Dança de Clarice” (1999), livremente inspirado no livro “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres”, de Clarice Lispector e “Vagarezas e súbitos chegares” (2000), livremente inspirado nas obras de Adélia Prado e Elida Tessler. Outros trabalhos existem. E sinto algum alívio, repensando todos, porque gosto de constatar que conseguimos manter fidelidade ao que realmente nos interessava, mesmo sendo o caminho mais difícil. Descubro uma coerência nesse caminho, e isso me inspira mais respeito pelo grupo e pelo que construímos, um novo território. Um espaço de trabalho cênico é polarizador de trocas muito intensas, e por isso mesmo deve ser sagrado, de outra forma não o suportaríamos. Em meio a tantas diferenças e intensidades, a disciplina parece indicar o único caminho possível para a liberdade. O que conquistamos, de nós para nós mesmos, é mais do que qualquer um de nós possa falar ou saber. A diversidade reflete nitidamente uma busca, uma inquietude que foi aceita e absorvida como forma de andar.

Meu trabalho, minha pesquisa de linguagem e a dança contemporânea

Minha dança sempre foi muito mais determinada por uma necessidade do que por fatores externos favoráveis. Quanto mais me sentia limitada em meus movimentos, graças aos problemas de mobilidade que me surgiam (ou que acabava criando para mim mesma), mais precisava descobrir novas possibilidades de continuar me movendo. Houve um momento em que nada, absolutamente nada da minha formação técnica parecia caber no meu corpo. Pouco era exeqüível sem risco, e o que conseguia realizar não me satisfazia. A vontade de dizer/contar/dançar coisas era intensa e desproporcional à minha limitação física. E justo por causa de minha limitação física, precisava saber muito mais sobre o que queria dizer, até encontrar uma forma adequada de lapidar essas imagens/movimentos em corpos alheios. Ter que descobrir uma forma possível, prazerosa e menos sofrida de dançar, me deu nova instrumentalização. Neguei a técnica grudada no meu corpo e quis outras. Mas cabe dizer: só pude negar a técnica, porque tinha uma técnica. E penso mesmo se a neguei por um tempo considerável, ou se não foi só um surto. Acho que absorvi de outros cantos e transformei em sensações no meu corpo. A técnica deixou de ser um fim, e passei a entendê-la como meio. Por tudo isso, não considero realmente que a dança contemporânea tenha sido opção. Era caminho inevitável, porque, com meu corpo, dançar sempre foi um risco, renovado a cada dia de trabalho, sempre foi aqui e agora. Cheguei à vontade de um minimalismo, de uma economia de gestos e de símbolos que hoje me parecem essenciais.

O papel, o trabalho, a contribuição...

Primeiro: o que faço é dança. Não me interessa no que mais pensem em me incluir. Segundo: só não há gratuidade. Tudo é bem mais elaborado do que aparenta. Algumas opções estéticas são decisivas, outras apenas inofensivas, mas são opções, não há inconseqüência. Até para lidar com o acaso no espaço cênico preciso de um apuro técnico, de um conhecimento prévio. E nunca acaba, nunca acaba. Cada vez que me pergunto como chegar a tal movimento se abrem muitas possibilidades, cada qual mais irresistível, mais sedutora, e todas precisam ser experimentadas. Para que? Às vezes, só para ver, só para saber, o resultado no palco é o que menos importa, num instante. Criar é algo que, quando se faz hábito, nos deixa cada vez mais avessos à concessões. A voracidade com que o processo criativo se constrói parece nos conferir um acerta integridade. Ser fiel a isso, me parece a única possibilidade de existência para o artista.

Outros Diálogos...

Os diálogos sempre existem. Gosto e preciso deles, é onde me abasteço. A música não é condição primeira para o movimento – embora o ritmo, sim – mas tem uma função importante, para mim, porque me inspira, desperta mais rápido um estado de atenção. Uma música bem escolhida, num processo de trabalho, tem o poder de dilatar os sentidos, acordar sensações. Já trabalhei com o silêncio, porque precisei dele, quis experimentá-lo. É possível encontrar silêncio no movimento, economia, mesmo com a música, assim como é possível encontrar sons mesmo com a música silenciada. É possível, ainda, que a música sirva apenas para construir uma atmosfera, que os corpos em movimentos permaneçam descolados dela, num ritmo próprio e orgânico. Nada é mais pré-condição para consistência, tudo já foi feito e experimentado. Acredito que agora se trata de sabermos o que usar, quando e como. Porque tudo está aí, para ser usado. A organicidade é que justifica o uso, para mim. Mesmo que o resultado cênico seja traduzido com estranhamento, e não com prazer. Freqüentemente, construo seqüências de movimento numa determinada música, e no palco aparece outra. A não ser nos primeiros espetáculos infantis e em “Vagarezas e súbitos chegares”, não trabalhei com cenários. No máximo, trabalhei com objetos. Não senti vontade, minha atenção permanecia nos corpos. Nos infantis, visualizei com facilidade. Em “Vagarezas...”, à medida em que me aproximava e conhecia as obras de Elida Tessler, mais percebia o meu trabalho impregnado disso tudo. Num dado momento, já não bastava que o trabalho dela me servisse de inspiração, era imprescindível que ele estivesse no palco, junto com o movimento. E a construção desse espaço devia ser feita por todas as mãos envolvidas. Foi um trabalho difícil, pelas circunstâncias que se impuseram, mas agraciado por grandes instantes de ternura. O vídeo aparece pouco nos trabalhos, desproporcionalmente a meu fascínio por ele, porque também é imagem em movimento. E sempre apareceu como cenário, como forma de imprimir mais um fator sinestésico à cena, contrapondo ou reforçando o movimento que os corpos realizavam. A palavra está sempre: como suporte que não aparece, como delineador dramatúrgico, como texto, de todas as formas ela sempre está. A literatura também me inspira bastante, porque a dança é o que não pode ser dito ou descrito. Para tocar nessa dimensão impalpável, por vezes recorro a seu extremo: as palavras capturadas. Ainda não realizei um trabalho utilizando texto e voz como gostaria. Está latente, eu sei.

Os bons encontros...

Também houve um tempo de muita solidão. Criar é de uma extrema solidão. Durante muito tempo fui marcada pela sensação massacrante de não ter com quem trocar, a não ser com as pessoas da Cia. Ter essas pessoas, ainda que parecêssemos mesmo uma ilha, isolados com água por todos os lados, já era um consolo, mas não supria toda a necessidade. As viagens e os novos contatos, avidamente firmados, prepararam o terreno para que ajudássemos a construir o Colégio de Dança do Ceará, dirigido por Flávio Sampaio e Ernesto Gadelha, espaço de troca fundamental, já defendido por todo o Brasil. Graças a isso, discutir sobre a dança e questões pertinentes a ela tornou-se um hábito diário e intenso. Um bom encontro parece sempre ser potencializador de outro. O bom encontro com Alexandre Veras, videomaker, se configurou numa troca fecunda, primeiro como tímidas conversas sobre o fascínio em comum que ambos carregávamos pela Antropologia Teatral de Eugênio Barba, depois como grupo de estudos sobre outros temas e com outras pessoas, que viriam a se reunir de uma forma mais organizada, originando o Alpendre: Beatriz Furtado, Eduardo Frota, Luis Carlos Sabadia, Manoel Ricardo de Lima, Carlos Augusto Lima e Sólon Ribeiro. “Palco de brincadeiras e invenções, lugar do espírito de alegria e criação. Lugar de pouso e pausa para os que passam, lugar de acolhida e flerte com a alteridade.”

Dignidade...

Dignidade, penso que há, sim. Há um cuidar, como um carinho suspenso que nos sobrevoa, sempre pronto a surgir. Já tentei me livrar disso, que acho romântico demais. Não adianta. O corpo sempre me inspira um olhar terno, apesar de toda a gama de intensidades que vem junto. Percebo que mesmo meus movimentos mais bruscos acabam por construir uma ternura. É assim que vivo e componho: gesto por gesto, atrás do que liga uma forma à outra, esperando que nessa economia se revele o essencial. Tudo vai se juntando, envolvendo outros corpos e percepções até um toque, que pode até ser leve e muito sutil. No fundo, sinto um grande carinho pelas pessoas. Carinho excessivo e insuportável, às vezes. Mas é o que acaba vazando, no meu trabalho. Não é a paixão pela dança. É encantamento pela vida. Isso me amaldiçoa e me salva.

5 comentários:

  1. Andréa, foi delicioso ter lido esse post em especial, porque fiz um passeio, uma volta no tempo. Pude ir ao sest-senac(?) e reviver meus primeiros time-steps aprendidos, as aulas de contemporaneo que observava (algumas vezes) e que sempre me deixavam com uma inquietação que só hoje a compreendo, se é que compreendo mesmo.
    a primeira bienal, onde conheci o sapateado da val, o workshop com os irmãos anicetos.
    as noites no domínio público que sempre eram deliciosas quando a companhia aparecia.
    lembro tanto da cacá e da Lili, naquelas intevenções, tanto, tanto.
    dá uma saudade boa, mas uma saudade de se saber que coisas aconteceram para que o hoje fosse possível.
    curso técnico.
    a cada dia um novo aprendizado.
    UMA DAS frases que estão aqui comigo,nesse instante:
    "Sempre que fui, foi pensando em voltar."

    a cada desejo meu de ir estabeleco um desejo de voltar.

    beijos.

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  2. em tempo:
    a primeira bienal que estive presente, que no caso, foi a II bienal.
    rs

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  3. Oi Déa, queria te agradecer pela partilha, fui atravessado por mil imagens, memorias e desjos. Queria estar agora ao teu lado, te ouvindo, perguntado e dividindo senasoes sobre nossas essa aventuras dançantes. Olho para nossos percussos e reconheço em cada gesto o que foi palantado e cultivado. Estou lendo um texto sobre o trabalho do Hubert Godard que fala entre outro sobre o tonus do corpo, "...a tonicidade de um individuo é a prova de sua historia afetiva com toda sua carga de emoçoes e de relaçoes estabelecidas com os outros. E é nesse estado tônico que reside a tensao expressiva do individuo." As vezes procuro dentro de mim quem realmente sou, depois de todo esse tempo, modelando, esculpindo e pesquisando meu corpo, fico observando todas as camadas e cada uma delas hoje faz parte e dar forma ao meu eu. Fico pensando em toda a mundança que vc desenvolveu no corpo, em todo o processo e os elementos usados nesse re-educaçao. Estamos em constante mundaça! Mas as vezes algo o que é interno me pergunta onde estou agora... Talvez todo esse fluxo precisa de um estado ou momento de pouso, repouso ou come propem o BMC, o retorno à celula, ao estado celular. Bem, ficarei atento e vizitando seu blog, aos poucos vou falando e escrevendo coisas, poderia passar horas assim, trocando figurinhas com vc. Xero grande na alma e obrigado mais uma vez pelo nosso encontro.

    nêga.

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  4. Aspásia,
    bom sempre constatar que com o sangue novo chegam também sempre novas questões e novas formas de estar no mundo, novas responsabilidades, mas também novas formas de inventar e novas brincadeiras!
    beijos grande e obrigada,
    andréa

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  5. Nêga tão querida,
    eu é que agradeço nosso encontro. "...a tonicidade de um individuo é a prova de sua historia afetiva com toda sua carga de emoçoes e de relaçoes estabelecidas com os outros. E é nesse estado tônico que reside a tensao expressiva do individuo." Precioso. Tudo que você falou me faz muito sentido. E de repente me ocorre como é importante aprender a fluir e escorregar, deslizar, para não esbarrar. Porque é importante que essa bagagem afetiva dilua-se por nossos poros, incorpore-se a nossas células, mas não nos endureça. Musculatura muito enrijecida me parece semelhante a coração muito endurecido. Por outro lado, só vôa o que tem peso.Sendo assim, como podemos ser o pássaro que conduz seu vôo, e não a pluma, que só é levada?
    beijos e obrigada, amor.

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