domingo, 1 de novembro de 2009

A invenção do lugar



Espetáculo Hymnen, Ballet de Lorraine, coreografia de Lia Rodrigues e Didier Deschamps, apresentado na Bienal de Dnça do Ceará (Foto: Alex Hermes)


O filósofo francês Jacques Rancière, sinaliza-nos que a política tem sempre uma dimensão estética, sendo ambas, estética e política, maneiras de organizar o sensível. Entendendo as práticas estéticas como “formas de visibilidade das práticas de arte”, Rancière situa a “partilha do sensível” como cerne da política, procedimento através do qual podemos construir a inteligibilidade dos acontecimentos.
Não à toa, questões como habitação, construção, permanência, formas de reunião ou de solidão convertem-se em dramaturgia na dança e na arte contemporânea, em geral, possibilitando a produção de novos significados que nunca estão postos a priori, na obra artística, mas se constituem sempre em relação.
Aproximando-nos ainda de mais um filósofo, Spinosa, e aceitando que cada indivíduo consiste numa potência singular, que aumenta ou diminui de acordo com os demais graus de potência a que se vincula, concordamos em entender o encontro como um plano de composição que de nós exige muita habilidade.
O bom encontro é aquele que aumenta nossa potência de agir. Ou, dito de outra forma por Vinícius de Morais, “a vida é arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. Se as paixões tristes, por sua vez, são aquelas que diminuem essa potência, convém lembrar então o quanto se ligam - as paixões tristes - ao exercício do poder.
Produzir um trabalho em arte contemporânea, portanto, não difere de pensar em como este trabalho se dará a ver, em que espaço, de que forma, através de que conexões se apresentará, a que atravessamentos estará sujeito. Ou seja: processo micropolítico de subjetivação, investimento de afetos em diferentes fases, pele-tecido onde a criação está imbricada com a exibição/performance.
Nesse sentido, podemos dizer que pensar em poéticas e políticas é pensar na invenção de um lugar, delimitado mais por intensidades do que por geografias, onde maneiras de fazer contribuem determinantemente para a reconfiguração de pertinências, relevâncias, territórios. Os corpos que dançam são os mesmos que protestam. São eles que convocam e provocam novas condições que permitam sua própria existência.
Inventar um lugar é inventar um novo espaço do corpo, operação que não é privilégio somente dos artistas, mas de qualquer relação onde haja investimento afetivo de corpos. Nossa capacidade de propor novas estratégias de colaboração está diretamente relacionada a nossa capacidade de invenção. Podemos pensar, então, que continuar inventando é continuar existindo, abrindo espaço para o que escapa, o que desloca, o que desestabiliza, como num embate criativo intenso e irrefreável.
Tal e qual na arte, a construção de novas condições de possibilidade no campo da vida depende fundamentalmente da nossa habilidade em compor afetos, mais que traçar alianças, favorecendo o surgimento de um plano de consistência potente, subversivo em si e por si, atravessado por dissensos, heterotopias, entre-lugares, estados de invenção que se constituem no avesso de um estado de exceção.
A Bienal Internacional de Dança do Ceará se pergunta: que planos de composição estamos ajudando a traçar? Qual a potência dos afetos aos quais nos vinculamos?
O preço de uma eficiência constante e inquestionável, que nos conduz à produção serializada – e aqui também situamos espetáculos, performances, instalações, projetos e editais – nesse caso, pode significar o comprometimento com procedimentos nada desejáveis.
Será que apresentamos nossas propostas com consistência suficiente para não esgarçar os encontros? Até onde estamos cientes de que a intensidade de um encontro não pode ser medida por um produto, que talvez o melhor seja nem haver um produto final? Como escrevemos nossos projetos, o que quantificamos em nossos relatórios? Que concessões estamos dispostos a fazer em nome da supereficiência que nos é solicitada por nossos financiadores e parceiros? Como estimular o surgimento de novos formatos de produção, exibição e circulação de trabalhos artísticos, reconfigurando os pactos estéticos já estabelecidos e investindo em novas – e sempre provisórias! – relações com o público? Como podemos evidenciar o imensurável sem sacrificar o indizível? Como potencializar bons encontros que se convertam em novos agenciamentos, que, por sua vez, deixem rastros éticos em nossas experiências estéticas?
É nesse contexto que a dança brasileira segue inventando seu lugar, ativando seu corpo coletivo, micropolítica e macropolítica indissociáveis. Trata-se mais do que Nós podemos fazer pelo mundo – e Eu nele, e o Outro nele – do que o mundo pode fazer por nós.
Andréa Bardawil
(artigo publicado no jornal O Povo, em 11/10/09)

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